Por: Marta Dueñas, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

As ações da ultradireita brasileira contra a democracia revelam, para além de tanta violência, uma predileção por violentar a arte, a cultura e as referências simbólicas da trajetória da nossa história nacional. Patriotas, pero no mucho, os invasores dos poderem, apesar de patéticos, são articulados e perseguem alvos certeiros. Um deles a arte e a cultura.

Os atos de violência e terrorismo cometidos no dia 8 de janeiro foram uma espécie de cereja do bolo da tática de alternância de discurso. Uma espécie de jogo do contra em que o discurso se margeia entre a moral e os bons costumes e a fala chula e agressiva. Estratégia essa que se aplica para uma série de questões centrais na pauta do fascismo brasileiro: seja para tratar da sexualidade conclamando o valor da família, mas sem deixar de se regozijar com seu próprio pau que supostamente não brocha ou para falar em liberdade defendendo um regime totalitário como a ditadura. E quando se trata de cultura, a narrativa segue essa dialética da dupla moral. A arte fascista é uma desconstrução da estética e mais uma ferramenta de dominação e controle do que uma expressão de liberdade e um direito à fruição.

Nessas invertidas, apoiadores do ex-presidente, sob o manto da liberdade, do nacionalismo e pela pátria, invadem o planalto numa tentativa de ferir gravemente a democracia, atingindo de maneira simbólica e real as estruturas governamentais. E nesses atos mensagens expressas foram dadas: o ódio à ordem, o ódio à história brasileira, ódio à cultura e às pessoas. Sem exageros, as cenas de terror, principalmente com obras de arte, coleções e objetos que, além de belíssimos, constituem acervo histórico de grande importância nacional, foram dignas de minisséries policialescas.

Nos rastros da destruição foram encontradas obras de arte rasgadas, pichadas, furadas e urinadas. Objetos boiando em água. Tudo tão real quanto simbólico. Um desejo de morte naquilo que é mais vivo: nossa carga imaterial. Não foi apenas quebrar fisicamente, destruir. O recado é mais profundo e está associado à maneira como essas pessoas enxergam o mundo, percorrem a sociedade e se relacionam com o outro.

Não bastando a tentativa de sufocar a cultura nos últimos quatro anos, os fanáticos mostraram todo seu desprezo e crueldade. Ao urinar em obras de arte, extremistas entregam, em rito, sua nobre produção: escatologia. A cultura e a arte acompanham grandes transformações sociais e também já foram suporte para elites em ascensão. A produção artística representa essa façanha da liberdade oras subversiva, oras subserviente. E essa liberdade, como do gozo, inflama algum gatilho na extrema direita provocando ira capaz de ferir quadros como fossem pessoas.

A obra “As mulatas”, de Di Cavalcanti, por exemplo, foi perfurada em sete pontos diferentes. É a principal peça do Salão Nobre do Palácio. O valor da tela é estimado em R$ 8 milhões, mas peças assim podem custar até cinco vezes mais em leilões. Muitos objetos históricos jogados no chão, rasgados, profanados ou roubados. O Relógio de Balthazar Martinot, do Século XVII, presente da Corte Francesa para Dom João VI, foi destruído. Só existem duas peças desse relógio no mundo: a outra está exposta no Palácio de Versailles.

Mas esses ataques não foram os primeiros contra a arte brasileira. O governo Bolsonaro consolidou-se como um inimigo da cultura. Ele desdenhou inúmeras vezes do melhor produto brasileiro: a identidade nacional que é indissociável da cultura. Reduziu a pó a força da cultura dentro da administração federal, escanteando-a para o Ministério do Turismo. Cortou incentivos e possibilidades de captação de financiamento, tentou excluir artistas do cadastro de microempreendedores individuais. Esculacha o cinema brasileiro e de quebra, ícones nacionais como Chico, Caetano Velloso, Gilberto Gil. Num dos raros segmentos em que sua predileção não foi perseguir mulheres.

A cultura vem sendo morta por inanição, depois pauladas, facadas e tentativas de afogamento, como sugerem as fotos de obras boiando nas águas do Palácio do Planalto. Somente um governo medíocre e conservador priorizaria destruir a cultura. Isso faz parte dos valores fascistas e é peça fundamental da disseminação de uma mentalidade retrógrada constituída por uma ideia absoluta, sem nuances, sem questionamentos.

O sucesso do crescimento da célula fascista brasileira está alicerçado nessa destruição do pensar e do fruir bem como da estética. As linguagens artísticas nos movimentam por inquietudes nos posicionam em fortalezas e fragilidades. O teatro, a música, a dança e o cinema nos impulsionam de forma não linear. Nos evocam a uma vivencia humana, simbólica do campo do inconsciente, muitas vezes. É algo muito complexo para a mente conservadora que prega respostas únicas, rígidas, absolutas.

Matar a cultura é, portanto, um plano para perpetuar essa linearidade tão aclamada no pensamento conservador. Linear e plano. A terra plana apresenta menos nuances do que a redonda. Esse universo em esfera, combatido no pensamento conservador, nos exige posições, perspectivas e variações, tal qual as linguagens artísticas. Essa complexidade que liberta é, também, angustiante. Portanto, achatar o pensamento, impor limites rígidos é uma resposta apaziguadora para o pensamento médio de uma sociedade angustiada (seja pela fome, pela pobreza ou pela existência no sentido mais filosófico possível).

Todo discurso binário promovido nos últimos quatro anos já era o afiar das facas que iriam perfurar As Mulatas de Di Cavalcanti e nos perfurar. É preciso controlar, conter, determinar e ter certezas absolutas para dar curso a uma sociedade conservadora, controladora e controlada. No pensamento democrático e progressista, existem mais perguntas do que respostas. Questiona-se o feminino, o masculino, a juventude e a velhice. Em resposta a essas questões, chegou-se a “Meninas vestem rosa, meninos vestem azul”. Certeiros e paranóicos, usando a bandeira nacional, esses fascistas fizeram mais uma cruzada violenta para impor suas paranóias. Mijando em nossa história.

Restaurar cada peça e cada quadro é urgente. Erguer um memorial aos ataques é fundamental, colocar palavras, cores e expressões é um caminho para a retomada da pluralidade e da liberdade de pensar, entender e viver. Ainda que a ultradireita tenha quebrado tantas coisas, a arte é o amálgama para reconstruir. E nessa esteira o Ministério da Cultura já divulgou a retomada dos primeiros grandes investimentos nessa pasta que é uma força nacional.