Quantas mulheres valem o peso em ouro da palavra de um homem?
Por: Regina Fiore, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diante das inúmeras denúncias e negacionista quando se trata de epidemias, a sociedade insiste em dizer: “não acredito nas vítimas de violência contra a mulher”
Em meados de 1920, o neurologista e fundador da psicanálise Sigmund Freud apresentou para seus colegas médicos a chamada de Teoria da Sedução, que basicamente afirma que toda pessoa diagnosticada como neurótica – em sua grande maioria, mulheres – havia sido abusada sexualmente durante sua infância, causando um trauma que, ao ser reprimido pelo inconsciente, se manifestava anos depois como doença psíquica e, muitas vezes, causava sintomas físicos.
Os colegas médicos de Freud o ridicularizaram e ele os chamou de burros, mandou todos para o inferno e voltou para casa, para fazer sua autoanálise. A quantidade de mulheres diagnosticadas como neuróticas durante os anos em que Freud estava clinicando, a partir da Teoria da Sedução, indicava que havia uma epidemia de abusos sexuais infantis em Viena. Pouco tempo depois, Freud escreveu: “Não acredito mais em minha neurótica”.
Muitas pessoas criticam essa frase de Freud, como se ele tivesse abandonado as mulheres à sua própria sorte. Minha leitura é: Freud abriu mão da Teoria da Sedução e passou a dizer que não importava se a neurose havia surgido de um fato real ou de uma fantasia de abuso para continuar tratando daquelas mulheres, sem a pressão social que poderia sofrer se continuasse afirmando que em basicamente todas as famílias abastadas de Viena havia abusadores sexuais.
Freud sabia que a sociedade de Viena do início do século XX não estava preparada para discutir a epidemia de abusos sexuais contra crianças. Ele ouviu isso de seus colegas médicos, de seus amigos, até de seus discípulos. Freud não quis comprar essa briga para continuar a ajudar as mulheres que estavam sofrendo por causa das violências cometidas contra elas quando ainda eram crianças. Mas talvez devesse ter comprado, para chamar atenção sobre o descontrole da epidemia de violência cometida contra mulheres e meninas.
Um século e um Oceano Atlântico de diferença e o retrato que temos é o seguinte: uma pesquisa realizada pelo Centro de Promoção e Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos mostrou que, no distrito peruano de Mazán, localizado no noroeste da Amazônia peruana, com apenas 13 mil habitantes, 79% das mulheres entre 18 e 29 anos já sofreram algum tipo de violência ou abuso sexual. Delas, 97% não denunciaram seus agressores. O estudo aponta que a maioria das agressões ocorre quando as vítimas são menores de 18 anos, por isso 56% das meninas entre 14 e 17 anos ficaram grávidas por causa de abusos.
Um distrito peruano pequeno e isolado, fora do alcance das políticas públicas, onde as mulheres não têm acesso à informação e os homens ainda têm práticas coloniais? Vamos para Minas Gerais, estado brasileiro que está entre os mais urbanizados do país, na região considerada a mais desenvolvida do Brasil. Segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp) , nos primeiros três meses de 2022, foram registrados 34 mil casos de violência doméstica e familiar contra mulheres. Em 90 dias, 34 mil mulheres foram agredidas dentro de suas casas.
Tudo bem, um estado específico, “nem todo homem”. Em entrevista, a presidente da Comissão de Enfrentamento da Violência Doméstica da Ordem dos Advogados do Brasil, da Seccional do Distrito Federal (OAB-DF), Cristina Tubino, afirmou que 70% das mulheres que são vítimas de tentativas de feminicídio não fazem denúncias, sendo que o Distrito Federal é o local que menos concedeu medidas protetivas às mulheres vítimas de violência. Mas usar o DF como exemplo também é generalizar demais, é um caso bem específico.
Ao ampliarmos a abrangência geográfica, talvez a vontade seja fazer coro a Freud e dizer: “Não acredito na vítima de violência contra a mulher”. É exatamente isso que a sociedade brasileira tem feito diante dos números que mostram que os abusos que ocorrem contra o sexo feminino são uma epidemia nacional. Um estudo feito em 2022 pelo Instituto Patrícia Galvão mostrou que quase 65% da população brasileira conhece uma mulher ou uma menina que já foi vítima de violência sexual.
Em 84% dos casos, o agressor era uma pessoa próxima e, em 64% dos casos, a violência aconteceu dentro da casa da vítima. No entanto, 8 em cada 10 vítimas afirmam que não procuraram nenhuma forma de atendimento depois que foram agredidas, nem para denunciar nem para serem atendidas por serviços de saúde – direito de todas as mulheres que passam por situações de violência, mesmo que não haja o registro do Boletim de Ocorrência.
Em um evento promovido pelo governo federal em 2020, a coordenadora-geral do Sistema Integrado de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência, Vanessa Vilela Berbel, declarou que, nos primeiros meses de pandemia, o número de denúncias de casos de violência doméstica aumentou 35%. O dado pode significar que as pessoas estão denunciando mais, mas também que o índice de agressões aumentou exponencialmente.
A sub-reportação não é exclusividade do Brasil, onde a cada oito minutos, em média, uma mulher é vítima de violência. Depois das denúncias de estupro contra o produtor e magnata do cinema Harvey Weinstein, dados divulgados pela agência federal US Equal Employment Opportunity Commission, que faz cumprir as leis americanas contra a discriminação nos locais de trabalho, mostraram que três de quatro casos de assédio no trabalho nos EUA não são reportados a supervisores. Estamos nós em negação?
O mal-estar é exclusividade das mulheres
Se 65% da população brasileira conhece uma mulher ou menina que já foi vítima de violência sexual, poderíamos com facilidade e lógica afirmar que 65% da mesma população conhece um abusador. Estamos tão (mal) acostumados a proteger agressores, em tantas frentes, no entanto, que é muito mais difícil admitir que um amigo, um irmão, um membro da família ou parceiro romântico faz parte desse grupo.
Não existem estudos conclusivos sobre a porcentagem de agressores sexuais ou domésticos no Brasil, mas o Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica) divulgou em 2022 os resultados de uma pesquisa em que 94% dos homens que participaram do levantamento disseram nunca ter agredido duas parceiras, apesar de metade deles terem afirmado que conhecem mulheres que já foram agredidas. A conta não fecha, nem mesmo entre eles.
O ônus da prática da agressão dificilmente cai sobre os homens. Além das pesquisas mostrarem que apenas 1% dos responsáveis por estupros serem judicialmente condenados, ao contrário do que diz o senso comum, a maioria dos acusados seguem suas vidas normalmente, sem nem ao menos terem que se submeter a tratamento psicológicos ou a contribuírem, de alguma forma, para a recuperação da vítima. Na verdade, muitos homens ganham ainda mais fama, mais seguidores e ainda mais oportunidades de trabalho.
A avalanche de denúncias que veio a tona, encorajada pelo movimento Me Too, provocou a reação, inclusive entre muitas mulheres, de “separar a obra do artista” – uma forma de manter homens que cometeram violências terríveis no pedestal que a sociedade os coloca, sem questionar suas atitudes, como se seus trabalhos pudessem, de alguma forma, inocentá-los em certa medida. Sinto muito informar, mas não podem. O brilhantismo de um filme, de uma música, de um livro ou de uma atuação no esporte não neutraliza o mal que os agressores fizeram na vida das mulheres que eles violentaram.
Na cerimônia do Oscar de 2017, a atriz Brie Larson estava presente porque ganhou a estatueta no ano anterior, por sua interpretação no filme “O Quarto de Jack”, no qual sua personagem era uma vítima de estupro. Neste ano, Casey Affleck, irmão de Ben Affleck, havia sido indicado como melhor ator por seu papel em “Manchester à Beira-Mar”. Affleck, que foi acusado anos antes de ter cometido assédio sexual, levou a estatueta e, como manda a tradição, Brie Larson foi incumbida da entrega. Larson, que sabidamente é uma apoiadora ferrenha das vítimas de assédio sexual, não aplaudiu o vencedor, em um protesto silencioso.
Casey saiu da cerimônia com o Oscar de melhor ator em mãos. Para Brie, restou apenas o constrangimento de premiar um assediador no maior evento do cinema mundial, transmitido ao vivo. A lista dos homens que “têm a vida destruída por denúncias de assédio sexual e violência doméstica e que nunca mais conseguem se reerguer” é grande, cresce a cada dia. Confira alguns deles, nacionais e internacionais, entre acusados e condenados:
- Ben Affleck
- John Lennon
- Charlie Chaplin
- Tiririca
- Marcius Melhem
- Marco Feliciano
- Mel Gibson
- Chris Brown
- Eminem
- Victor Chaves
- Sean Penn
- Netinho de Paula
- Kadu Moliterno
- Woody Allen
- Roman Polanski
- Lars Von Trier
- Ozzy Osbourne
- Mané Garrincha
- Cuca
- Goleiro Bruno
- Daniel Alves
- Robinho
- Nicolas Cage
- José Mayer
- Dado Dolabella
- Charlie Sheen
- Biel
- Casey Affleck
- Felipe Prior
- Diplo
- Stan Lee
- Cristiano Ronaldo
- Donald Trump
- Mike Tyson
- John Travolta
- Elton John
- Edi Rock
- Anderson Leonardo
- Nick Carter
- Steven Tyler
- Neymar Jr.
A fantasia perversa do clichê “é só denunciar”
O assunto não é fácil, as imagens não são bonitas, falar sobre isso de forma aberta e descrever a situação de violência de maneira mais crua não é agradável, mas é preciso. Portanto, daqui para frente, recomendo que as pessoas que sejam mais sensíveis em relação ao tema não leiam os próximos 3 parágrafos deste texto. As histórias narradas são fictícias, mas se assemelha a muitas histórias reais e podem despertar gatilhos para quem já passou por situações de violência.
Em uma casa na periferia, uma mulher estava sendo espancada pelo marido, que chegou em casa, na frente dos dois filhos pequenos. Foi empurrada contra a parede, levou socos no rosto, na costela, teve o pescoço apertado. Estava cozinhando e ficou com medo que o marido a queimasse no fogão. A faca que ela estava usando para cortar os legumes estava em cima da pia e ela ficou com medo que o marido a esfaqueasse ou partisse para cima das crianças, que choravam muito.
Enquanto apanhava, pedia para seus filhos irem para o quarto, com medo do que eles pensariam do pai. Enquanto apanhava, pedia desculpas e implorava para o marido parar de espancá-la, sem saber se sairia viva de mais uma briga. Enquanto o marido a empurrava contra móveis e paredes, os vizinhos ouviam os choros, os gritos, os socos e tapas e depois não ouviram mais nada. A porta de entrada bateu e o marido saiu, de carro.
Na cobertura de um condomínio, outra mulher estava se defendendo de uma briga com o namorado ciumento. Ele arrancou o celular das mãos dela e jogou na parede. Socou os armários de bebida. Rasgou o vestido de grife que havia dado de presente para ela. Ameaçou jogar o cachorro dela pela janela e ela, desesperada, pediu desculpas por conversar com outro homem pelas redes sociais. Chamou-a de prostituta e disse que ia tratá-la como prostituta, se era assim que ela ia se comportar. Segurou suas mãos atrás das costas, rasgou sua calcinha e a estuprou no chão da sala do apartamento com piscina e varanda gourmet. Ela ficou paralisada, em silêncio. Quando ele acabou, foi tomar banho.
Ambas as mulheres saem de suas casas, devastadas e tremendo por suas próprias vidas, com dores físicas e emocionais, traumas e confusões, com dificuldade de entender como os homens com quem dividem a mesma cama são também os homens responsáveis pelos hematomas e machucados que estão levando as duas até uma delegacia de polícia. As duas estão sozinhas, ainda não entenderam muito bem o que aconteceu. Sabem que sim, precisam denunciar o que aconteceu, mas não sabem para quem ligar, o que dizer, como explicar o que vivenciaram nesses minutos de terror.
A partir desse momento, essas mulheres vão reviver algumas dezenas de vezes a situação de violência pela qual passaram e provavelmente enfrentarão outras. Esse é apenas um dos motivos pelos quais a grande maioria delas decide não procurar ajuda ou posterga a denúncia do agressor depois de sofrer violência doméstica ou sexual, até que a violência escala e acaba se tornando feminicídio.
A dúvida que fica na fala do senso comum é sempre a mesma: “por que as mulheres não denunciam?”. A resposta é curta e grossa: porque as mulheres que denunciam têm tudo a perder. A promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo Silvia Chakian, do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica), destacou alguns dos motivos, em entrevista para a BBC:
1) A dificuldade de entender a violência ou assédio: vamos tentar o difícil exercício da empatia aqui. Imagine a confusão mental que gera em qualquer um dividir a vida, os sonhos, os bons momentos, as fotos, casamentos, família, filhos, comemorações, viagens, planos de futuro, jantares, séries e idas ao cinema, piadas internas, frustrações e desabafos com a mesma pessoa que é capaz de cometer contra você os piores atos de violência, que incluem machucados físicos.
Não é só difícil de entender, é difícil de aceitar, admitir e reconhecer que houve agressão. Além disso, em muitas famílias brasileiras algumas violências são normalizadas, já que nem todas elas são físicas: existem as psicológicas, patrimoniais, morais, sexuais e jurídicas.
2) As vítimas são desacreditadas: crimes contra as mulheres são os únicos onde a palavra das vítimas não é suficiente para que um inquérito seja instaurado. Em uma sociedade construída por homens para proteger os homens, a violência contra as mulheres muitas vezes é vista como um direito (como os casos dos maridos que agridem ou estupram as esposas ou pais que agridem as filhas em nome da “honra”) ou como consequência das ações das próprias vítimas (roupa que estava usando, local que estava no momento da agressão, estado de embriaguez, número de parceiros sexuais, profissão, fotos postadas nas redes sociais, entre outras). Violências contra as mulheres são crimes difíceis de serem provados, muitas vezes por falta de provas em vídeo ou testemunhas oculares.
Muitas pessoas ainda acreditam na falácia de que as mulheres denunciam seus agressores publicamente para prejudicá-los, por ciúmes, por inveja ou por interesse financeiro – e, na verdade, quem sai perdendo muito mais são as próprias vítimas, que são perseguidas e taxadas de golpistas publicamente. Os agressores, que supostamente têm suas carreiras destruídas, continuam ganhando Oscars, lançando álbuns de sucesso, lotando shows, fechando contratos milionários com times de futebol, sendo eleitos para cargos públicos, liderando grandes empresas.
3) O medo do agressor: toda vítima de violência, seja doméstica ou sexual, tem medo de seu agressor. O medo vem de vários lados: da violência se repetir e o agressor ficar ainda mais violento, caso haja denúncia; da represália que pode sofrer da sociedade ou da família; de seus filhos serem agredidos como forma de vingança; da violência ser ainda maior na próxima vez que acontecer. A violência de gênero humilha e mina a capacidade das mulheres de reagirem, por meio do medo e da intimidação.
Além disso, são necessárias muitas pessoas para contestarem a negativa de um homem sobre um estupro, assédio ou violência doméstica. Na balança da violência de gênero, a palavra de um homem vale seu peso em ouro, enquanto a fala da vítima precisa ser replicada dezenas de vezes para ser considerada durante uma denúncia.
4) A culpa e a vergonha: depois de uma agressão, é comum que as vítimas se culpem e se perguntem o que fizeram para merecer ou provocar aquela situação. Algumas delas ouvem de muitos profissionais da saúde, em atendimentos psicológicos, que elas também são responsáveis por estarem naquela situação. Quando as vítimas, em vez de serem acolhidas, são desacreditadas por todos os grupos sociais, inclusive aqueles que deveriam protegê-las, os sentimentos de vergonha e culpa tomam conta e levam à destruição da confiança e da coragem para denunciar e para seguir em frente com qualquer processo contra o agressor.
Em uma sociedade onde a violência contra as mulheres é normalizada em filmes, séries, propagandas, discursos de figuras públicas, músicas, comentários que se pretendem engraçados, todo comportamento feminino pode se transformar em motivo para agressões – e para culpabilizar as vítimas pelo que elas sofreram.
5) As dificuldades para denunciar as agressões: é muito importante encorajar sempre que possível as mulheres a denunciarem qualquer tipo de violência que elas sofrerem ou souberem que alguém sofreu, em qualquer ambiente ou situação. Tão importante quanto é deixá-las avisadas sobre o longo processo que vem pela frente, a partir da denúncia e o quanto é fundamental elas contarem com apoio de uma advogada e de pessoas próximas durante essa jornada, que não vai ser nada fácil. Existem projetos em todo Brasil dedicados a auxiliar e acolher as mulheres vítimas de violência, existem leis, como a Lei Maria da Penha, que protegem as mulheres, mas também são vários os obstáculos que vão aparecer, principalmente se o agressor estiver disposto a transformar a vida da vítima em um verdadeiro inferno e se tiver filhos pequenos envolvidos na história.
Não é só ir na delegacia fazer um B.O. e pedir as medidas protetivas, apesar de esses passos serem os primeiros e fundamentais. A partir daí, a jornada pode ser longa e desafiadora – mas fundamental para que outras mulheres também tenham coragem para denunciar e para que o sistema judicial e a sociedade como um todo comecem a mexer em direção à proteção das vítimas de violência de gênero. No entanto, enquanto não houver políticas públicas que realmente olhem para o problema como uma epidemia que precisa ser controlada e resolvida, é impossível julgar as mulheres que decidem, em nome da própria sobrevivência e da sobrevivência de seus filhos, abrirem mão de buscar justiça para os crimes dos quais foram vítimas.
Vamos parar de dizer “é só denunciar” quando, na verdade, não existe nada de “só” na decisão de denunciar um caso de violência contra mulher. É constrangedor, provinciano, estúpido, insolente, petulante, ofensivo e agressivo que, com a quantidade de informações disponíveis sobre o assunto, essa frase ainda seja dita – por homens ou mulheres.