A justiça restaurativa para mulheres vítimas de violência no RS
Por Adriana Buarque, Jornalista – SP
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Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vem transformando a vida de centenas de gaúchas vítimas de violência doméstica, através das boas práticas com a justiça restaurativa
As atuais transformações políticas, sociais, ambientais, econômicas e tecnológicas indicam a necessidade de uma análise a fim de compreender a complexidade do ser humano. Independente da lente utilizada – seja retributiva ou restaurativa –, é importante a percepção de que muitas vítimas querem sentir e vivenciar a justiça como algo real, ser informadas, consultadas e ter uma participação ativa no processo.
Questões de direito da família podem ser remetidas à Justiça Restaurativa em qualquer fase da ação, sendo de procedimento comum ou especial. Ela surge como contraposição à concepção tradicional da justiça criminal, a justiça punitiva-retributiva. Em voga desde a década de 1970, se baseia em modelos do Canadá e da Nova Zelândia, e foi implantada no Rio Grande do Sul em 2005, através do Projeto Justiça para o Século 21.
A Justiça Restaurativa pode ser entendida como um conjunto de técnicas e práticas para a solução consensual de conflitos. Tendo como referência a Resolução 2002/12 da ONU, sua metodologia está lastreada na participação ativa de todos os envolvidos – ofensor, vítima, familiares e comunidade. E a prioridade é sempre a promoção do diálogo entre as partes.
Em Porto Alegre, funciona a Central de Práticas Restaurativas do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre. E, desde 2012, a Justiça Restaurativa passou a integrar os serviços oferecidos pelos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC), ao lado da conciliação e da mediação. Em agosto de 2014, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aderiu ao Protocolo de Cooperação Interinstitucional para a Difusão da Justiça Restaurativa, em Brasília.
Em termos gerais, na prática o sistema tradicional desencoraja a conciliação e não incentiva o encontro pessoal entre as partes, representadas por advogados que formulam seus pedidos e defesas perante o juíz, o qual decide a lide e impõe sua decisão para cumprimento. “Embora a vítima tenha que participar na forma tipificada no processo penal, entendemos que ela deve ser atendida em suas necessidades. Este é o caminho que o judiciário vem tentando adotar inclusive com edição da Lei de proteção às vítimas e testemunhas (Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999 e Decreto no 3.518, de 20 de junho de 2000) – mas, ainda assim, tratadas como meras expectativas do processo. O direito das vítimas ainda está marcado pelo viés processual”, afirma a psicóloga Ivete Machado Vargas, do 1º Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Porto Alegre.
Por vezes, a sentença judicial não atinge o real interesse do jurisdicionado, pois abrange apenas as questões juridicamente tuteladas e não seus interesses reais. A justiça restaurativa não pretende competir com as várias formas tradicionais de aplicação do direito e há casos em que não comportam práticas reparativas e a solução tradicional deve ser aplicada.
O que é tratado no processo judicial nem sempre trata os fatores sociais que implicam o conflito e que são importantes para sua resolução efetiva. É o que difere a lide sociológica (alcançada pelos métodos autocompositivos) da lide processual (mais restrita e contemplada pela sentença judicial). “Mesmo que o protocolo de 2014 entenda os direitos humanos estabelecendo que as vítimas sejam tratadas com humanidade, sendo dever das instituições envolvidas na persecução penal de casos de tentativas ou mortes violentas de mulheres, cuidar da segurança, bem-estar físico e psicológico, intimidade e privacidade das vítimas sobreviventes e das vítimas indiretas, sendo estes princípios assegurados na Constituição da República Federativa do Brasil, e, em sentido amplo, garantam informação, assistência, proteção e reparação, ainda assim se pensa no escopo do processo criminal”, explica a dra. Ivete, “dependendo, portanto de uma sentença e de uma condenação e nestas a vítima não participa.”
Segundo a psicóloga, a Lei Maria da Penha, ao contrário, ainda que mantendo as características do processo penal, visa a proteção e a prevenção e pensa as medidas de proteção não só como medida de cuidado e de precaução com o encaminhamento da vítima, ofensor e familiares para a rede e programas de defesa com a busca do empoderamento, da independência financeira inclusive, bem como na educação dos ofensores. “É aplicada como mais uma ferramenta em busca da transformação dos comportamentos decorrentes do machismo estrutural, visando a construção da paz. Não impede a instauração ou o prosseguimento do processo criminal, e geralmente é utilizada ainda na fase do processo de medidas protetivas”, completa a Juíza de Direito titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Alegre, dra. Madgéli Frantz Machado.
A justiça restaurativa é um procedimento que prioriza o diálogo entre os envolvidos na relação conflituosa e terceiros atingidos, a fim de que construam de forma conjunta e voluntária as soluções mais adequadas para a resolução dos conflitos. Ela pode ser utilizada em todas as demandas, porém a pertinência de sua aplicação deve ser analisada no caso concreto. Segundo a dra. Madgéli, “o processo restaurativo é centrado na vítima, sem descuidar de atender também as necessidades do ofensor, já que, em se tratando de violência doméstica, há motivações multifatoriais, e somente será possível atingir a pacificação social com também coibir a violência contra a mulher se houver o atendimento das necessidades de todos os envolvidos no processo, especialmente em relação a quem pratica a violência.”
Seu emprego se dará com utilização de técnicas, processos e métodos adequados para resolução de conflitos nos âmbitos criminal, cível, familiar, infância e adolescência, execução penal, júri ou em quaisquer outras áreas do direito quando vislumbrada a existência de relações continuadas, de vários vínculos, comunitárias, interpessoais, interinstitucionais, dentre outras. No âmbito do Poder Judiciário, a justiça restaurativa pode ser aplicada em qualquer momento da relação conflituosa, tanto na fase pré-processual quanto processual.
Deve ser aplicada com a anuência expressa dos interessados, a qual inclusive pode ser retirada a qualquer tempo durante o procedimento. Na busca do diálogo e da compreensão, os interessados devem ser esclarecidos sobre seus direitos, vantagens (quais vantagens, esclarecimento, se a vantagem não é processual, redução do processo etc) e consequências, para que, então, com o devido conhecimento, sintam-se preparados para optar pelas práticas restaurativas e pela construção conjunta da solução para o conflito.
Todas as situações vivenciadas são acobertadas pela confidencialidade e é essencial para que os interessados se sintam confiantes para exporem suas experiências, seus sentimentos e como a relação conflituosa afetou suas vidas. A regra do sigilo é mitigada por autorização expressa das partes, violação à ordem pública ou às leis vigentes.
Emancipação feminina e rompimento do ciclo de violência
A justiça restaurativa é um meio viável de emancipação feminina e construção da cidadania de gênero, porquanto, tal solução atua como meio complementar de tutela penal, uma vez que esta prioriza o diálogo como elemento de humanização na busca da solução do conflito. “Procuramos fortalecer, resgatar a autoestima e proteger a mulher da violência, seja física ou psicológica”, afirma a Juíza de Direito Andrea Hoch Cenne, titular do Juizado da Violência Doméstica da Comarca de Novo Hamburgo.
Em primeiro lugar, a justiça restaurativa trabalha na dimensão da vítima, enfatizando seu empoderamento, na medida em que o conflito compromete o sentido de autonomia. No sistema tradicional, a vítima é vista apenas como objeto de prova, quando em verdade é a principal atingida pelo conflito e deveria participar ativamente de sua resolução. “É fundamental que a mulher se perceba como vítima da violência, tanto física quanto psicológica”, comenta a dra. Andrea.
A prática oportuniza à vítima esta participação e o conhecimento das medidas que estão sendo adotadas para reparar o mal sofrido. Essa dimensão (a da vítima) é essencial no processo restaurativo, ainda que ocorra de maneira indireta ou simbólica (exemplo: homicídio, em que a vítima é representada pela família; tráfico de drogas, em que a vítima é a sociedade).
Um outro aspecto que a justiça restaurativa trabalha é do ofensor, buscando incutir nele o senso de responsabilização para que compreenda efetivamente as consequências da sua conduta e o mal causado e contribua, de modo consciente, com a construção de mecanismos para a reparação desse mal. O agressor não se sente responsável pelo dano quando é condenado a repará-lo por meio de uma decisão verticalizada.
“Normalmente, o ofensor é imaturo, traz o discurso dizendo que não é criminoso”, assevera Andrea Cenne. Muitas vezes, sente-se vítima da sociedade quando é condenado a reparar o dano e não percebe que a sua retratação é uma forma de amenizar o mal. Entretanto, a psicóloga Ivete Vargas tem uma outra visão: “todos eles, salvo raras exceções de saúde mental, têm maturidade emocional, tanto é que trabalham, são considerados bons cidadãos, e quando fazem avaliações psiquiátricas e psicológicas, dificilmente apresentam algum transtorno de conduta ou problema de personalidade”.
Trabalha-se também com o transgressor o sentido de pertencimento para que se sinta responsável pela resolução do conflito e, ao final, volte a ser parte da comunidade que desestruturou com a sua conduta. “Isso ocorre através do autoconhecimento, da reflexão sobre os seus atos, do reconhecimento das necessidades da vítima e da transformação do seu comportamento, que se constitui também em forma de reparação com reflexos para além do processo”, atesta Madgéli Frantz.
Finalmente, no que diz respeito ao grupo de que faz parte, pretende-se resgatar e fortalecer o senso de coletividade e o sentimento de corresponsabilidade, no estabelecimento de inter-relações horizontais. Em grande parcela dos vínculos conflituosos, a comunidade na qual a vítima e o ofensor pertencem é atingida pelo choque e deve ter a prerrogativa de colaborar na restauração dos interessados.
“Existe uma questão cultural envolvida em que o homem não se sente julgado por considerar a mulher como propriedade sua, logo a comunidade culpa a vítima por um crime que não cometeu”, informa Andrea. A participação ativa do grupo diminui a sensação de impunidade, que, muitas vezes, decorre do desconhecimento do processo e das medidas aplicadas. O sentimento de inoperância do Estado leva as pessoas a querer fazer “justiça com as próprias mãos”.
Cultura machista necessita mudança
“Geralmente, em casos muito graves e que envolvam crianças, o que se percebe é que a comunidade quer uma punição do agressor (às vezes, da própria mulher) demonizando o ofensor e culpando a vítima”, afirma Ivete. Segundo ela, enquanto não forem trabalhadas estas questões de cunho cultural, dificilmente se conseguirá a erradicação da violência contra a mulher ou que o homem se veja no lugar de partícipe dessa opressão e discriminação.
O principal objetivo da justiça restaurativa é restabelecer os envolvidos no conflito e a relação quebrada por ele. Busca, por meio do diálogo entre os interessados, compreensões mútuas e comprometimento, conferindo maior dignidade e consciência de seu papel na sociedade. Como consequência – e não objetivo – da restauração dos interessados, está a reparação do dano à vítima e a recuperação social do ofensor. “É necessário que seja motivada por um processo formal com apoio do judiciário”, defende a assistente social da Cadeia Pública de Porto Alegre, Simone Felix Marques.
A justiça restaurativa visa a construção conjunta de um ajustamento entre os sujeitos envolvidos no conflito. “Para que haja esse ajustamento, todos devem estar cientes e de acordo com seus direitos e obrigações”, atesta Simone. O consenso aqui tratado não se refere ao acordo eventualmente firmado entre os interessados para resolução do conflito, mas sim quanto à participação e à condução da prática. Deve ter uma característica integrativa.
Por meio de encontros (círculos restaurativos), conflitos, disputas e crimes que costumeiramente aportam na esfera judicial, os casos são solucionados de forma pacífica através de práticas estabelecidas em estratégias de diálogo que reúnem familiares e amigos dos envolvidos, bem como a comunidade da qual fazem parte. As reuniões permitem a expressão de sentimentos e o reconhecimento de necessidades, dando base à restauração dos relacionamentos e dos laços sociais rompidos.
Círculos de Paz
Existem vários métodos para aplicação das práticas reparativas, como conferências familiares (circular narrativa), mediação transformativa, mediação vítima-ofensor (Victim Offender Mediation), conferência (conferencing), círculos de pacificação (Peacemaking Circles), círculos decisórios (sentencing circles), restituição (restitution), entre outros.
“Os círculos de construção de paz são práticas dentro da justiça restaurativa cujo principal objetivo é a reintegração conforme as necessidades dos envolvidos (podem ser círculos para vítimas de violência doméstica e círculos para ofensores), portanto inclui reflexão e construção de compromissos conforme os objetivos dos círculos, mas não abarcam a sentença criminal, seja ela qual for”, completa a dra. Ivete.
Como forma de combater o ciclo da violência, os Juizados de Violência Doméstica do Foro Central de Porto Alegre criaram o Projeto Borboleta. “O Projeto Borboleta desenvolve várias ações multidisciplinares em benefício dos envolvidos na situação de violência (vítima e seus dependentes, assim como o ofensor) e da comunidade (ações de prevenção)”, acrescenta a dra. Madgéli.
“O projeto é uma série de ações concebidas para proteção e prevenção da violência, entre elas: palestras, cursos, formações, atendimento em psicoterapia breve, grupos reflexivos de gênero, grupo de acolhimento, convênio com instituições (organizações da sociedade civil e universidades), para atendimento das necessidades dos envolvidos”, discorre a psicóloga. O objetivo é orientar, acolher e dar dignidade às vítimas, filhos, bem como realizar um trabalho com os ofensores, buscando auxiliar na compreensão do fenômeno do ciclo de agressão encontrando caminhos e soluções para erradicar a violência doméstica.
A própria especialista Ivete Vargas relata: 40 homens sendo atendidos no grupo de atenção à saúde mental auxiliados por um psiquiatra voluntário, Dr. Nélio Tombini; 62 homens encaminhados para grupos reflexivos de gênero na modalidade online em parceria com a UFCSPA; 39 homens já atendidos em grupos reflexivos de gênero na modalidade presencial com voluntários; 22 participando de grupos reflexivos de gênero na modalidade presencial; 209 homens encaminhados para os grupos reflexivos de gênero somente este ano; 396 mulheres foram entrevistadas dando entrada ao projeto borboleta somente em 2022, além das que já são atendidas.
Maria Elisabete Silva Borges, pensionista do estado do Rio Grande do Sul, foi uma das beneficiadas do Projeto Borboleta. “Meu irmão era alcoólatra e me atacou com duas facas, uma em cada mão”, relembra a pensionista. Segundo ela, o fato aconteceu em 2016 e logo ocorreu a denúncia com a ligação para o 190. “Tivemos duas audiências, sendo a última restaurativa”, conta Maria Elisabete, “e tudo foi feito na base do diálogo, tanto em relação a mim quanto a ele”.
No que diz respeito ao Projeto Borboleta, Elisabete narra que recebeu um excelente acolhimento. “Vi que não só meu caso era delicado, mas havia outras histórias mais graves até”, reporta, “também existia um grupo voltado para o recebimento de homens, entretanto meu irmão não quis participar”. Ela diz que o grupo parou durante a pandemia, mas na segunda quinzena de agosto deste ano voltou às atividades.
A oportunidade de expor histórias sobre a vida possibilita que os participantes mostrem quem são na realidade, favorecendo a conexão entre as pessoas. “Normalmente, sempre a vítima carrega a pergunta ‘por que isso aconteceu?’”, comenta a assistente social Simone Marques, “e num círculo de paz talvez seja possível encontrar a resposta”. Percebe-se que não há necessidade de temer aquele com quem se identifica, especialmente num espaço seguro como o do círculo.
Para possibilitar os relatos das experiências, é necessário que a conversação entre os participantes seja ordenada, atribuindo-se a palavra a cada um por vez sem interrupções. Todos têm a palavra de forma sequencial e o detentor tem a prerrogativa de falar e ser ouvido, com a certeza de que terão oportunidade de contar suas vivências sem serem interrompidos ou contestados. “É o ‘olho no olho’, sem máscaras”, informa Simone. Existe nas reuniões o exercício da escuta ativa, que é o estímulo para que os participantes realmente ouçam uns aos outros. Quando o indivíduo é escutado, sente-se valorizado e se expressa com maior flexibilidade.
A importância do interlocutor na mediação do conflito
O mediador é figura essencial para a realização do círculo. É ele quem orienta os participantes, preza para que se mantenha o respeito e a tolerância no círculo e formula as perguntas que direcionam a condução da prática. O primeiro assunto a ser tratado no círculo nunca deve ser a relação conflituosa, já que, geralmente, inicia-se a conversa com a construção de valores.
Com o intuito de aproximar as pessoas, o interlocutor, por meio de perguntas empáticas, estimula os interessados a trazer suas experiências pessoais para serem compartilhadas com o grupo. Somente após estas etapas de aproximação é que se oportuniza o relato do conflito e o impacto dele na vida dos participantes. Com a compreensão consciente do mal sofrido e causado, parte-se para a construção de mecanismos para repará-lo, com o efetivo comprometimento de todos. “Às vezes, o agressor quer explicar, às vezes não”, explica a assistente social.
Sempre é bom relembrar que o planejamento, a organização e a realização do círculo deverá ser feito por pessoas devidamente capacitadas em justiça restaurativa. Trabalhando há 16 anos no sistema carcerário, Simone comenta que começou a lidar com o assunto em 2015 por intermédio do curso ‘Justiça para o Século XXI’. “Queríamos no início transmitir o conhecimento para os casos de detentos e de facções que agiam fora do presídio”, relembra.
Para além das exigências legais que implicam a participação da vítima (oitiva, intimação da sentença, intimação de cumprimento da pena), é preciso dar a oportunidade para que ela (a vítima) expresse e valide sua raiva, seu medo e sua dor para fazer do processo restaurativo uma experiência de justiça (que não se deve confundir com vingança).
Essas respostas poderão dar início ao processo de recuperação que pode ser longo, pode até não ressarcir suas perdas materiais, nem aplacar seu luto pela dor física ou perda de um ente querido (em casos mais graves), mas poderá transformar o medo em necessidade de seguir como sobrevivente com alguma sensação de segurança. “Houve um círculo restaurativo em que fui mediadora e que levou sete meses”, narra Simone, “e o pai que assediava a filha acabou assumindo a culpa que ele negava, a mãe chorou, a família foi desestruturada, todavia, no final, a filha não ficou com raiva dele, era nítido que no fundo ela queria uma solução”.
A constelação familiar no auxílio dos círculos restaurativos
É primordial destacar a dificuldade, tanto no poder judiciário como a própria família em lidar com tais conflitos. Uma vez que é extremamente delicado e sensível para a vítima denunciar o próprio familiar, os casos de violência doméstica e sexual que chegam até o conhecimento do Estado são irrisórios quando comparados com a estimativa real realizada por pesquisas. É quando a constelação familiar se apresenta como complemento na adoção de círculos restaurativos.
A constelação familiar ou constelação sistêmica é uma técnica desenvolvida pelo alemão Bert Hellinger no final dos anos de 1970 e que se baseia em abordar como a história e as relações familiares influenciam as emoções e padrões de comportamento das pessoas. “O trabalho é semelhante a um jogo, podendo ser ao vivo ou até mesmo com um tabuleiro”, expõe Viviane Magalhães, especialista no assunto.
Ao dar voz a ambas as partes na ação penal, e mesmo com a execução da pena privativa de liberdade realizar medidas reparativas, há a possibilidade de ressignificação do conflito. Uma vez que o ofensor nos casos intrafamiliares, sendo excluído do sistema familiar ou não, não deixará de ter laços com a vítima e os demais familiares, se a exclusão ocorre o sistema voltará a trabalhar para a integração e equilíbrio. Não é exigível, muito menos sensato que a vítima e o ofensor retomem laços, assim como não é necessário excluí-lo totalmente do sistema familiar.
Com a visualização do conflito através da Constelação Familiar, existe a possibilidade de atribuir novo sentido à dinâmica, uma vez que nos crimes domésticos ambos os lados, tanto “vítima” quanto o “agressor”, fazem parte de um mesmo sistema e ambos estão a serviço do mesmo a fim de restabelecer a estabilidade. “Já tive a oportunidade de trabalhar com agressores que foram excluídos das relações familiares”, conta Viviane, “e com as conversas, pouco a pouco as relações foram restabelecidas”.
É necessário, portanto, que se olhe para a situação e por intermédio da constelação para o sistema familiar, mas também se volte olhares para o sistema social. A repetição, guiada pelo campo da consciência coletiva que pertence aquele sistema, atua com a finalidade de gerar pertencimento a todos, e assim estabelece uma nova chance de integração, inclusive de maneira intergeracional.
Sendo assim, a justiça restaurativa contra a violência doméstica contempla à mulher uma nova possibilidade de vislumbrar perspectivas que até então não seriam possíveis. Além disso, quando o Estado estende tais possibilidades de atuação de pertencimento das partes na ação penal, atua junto com a estrutura familiar para solucionar o conflito e estabelecer o equilíbrio, não somente no momento atual mas também no futuro.