Por: Marta Dueñas, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

No final de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a jugar a ação que pede a descriminalização do aborto realizado até 12 semanas de gestação. A proposta é de 2017 e foi apresentada pelo PSOL e pelo Instituto Anis. O tema, como outras pautas ligadas aos Direitos Humanos, tem causado uma agenda reativa dos setores mais conservadores da sociedade brasileira, especialmente segmentos religiosos ligados, ou não, ao campo da direita e extrema direita nacional.

A partidarização do debate bem como a substituição das evidências cientificas por crenças religiosas é capaz de secundarizar os direitos reprodutivos femininos e a questão de saúde pública nacional. O aborto já é uma realidade no Brasil e é o quinto maior causador de mortes maternas em nosso país.

Segundo um estudo publicado em 2013, uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fizeram, pelo menos, um aborto na vida. Estima-se que 800 mil mulheres praticam abortos anualmente. Dessas, 200 mil buscam o SUS para atendimento de sequelas de procedimentos mal feitos. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres.

Atualmente, existem 37 milhões de mulheres com mais de 40 anos, pensando na estatística do estudo, é possível que 7,4 milhões de brasileiras já tenham feito pelo menos um aborto. E eu acredito que nesse numero existam cristãs, conservadoras, adolescentes de famílias tradicionais e uma série de perfis que, provavelmente, se colocam contra a prática, mas que alcançam realizar o procedimento de maneira sigilosa e escondida. O que quero sugerir com isso? Que o aborto, como tema conceitual, é um debate complexo que movimenta um profundo esquema de crenças humanas, mas que quando a gravidez indesejada habita um corpo, é nele que a decisão deve (ou é) tomada. E que bom, pois é fundamental que as mulheres ocupem seus lugares de fala para bancar os argumentos e posições sobre o tema.

Para se ter uma ideia, recente estudo a respeito do conteúdo postado em redes sociais entre homens e mulheres revela que 58,9% dos brasileiros demonstram ser contra a descriminalização do aborto por meio de post e textos que afirmam isso. Os posts e conteúdos favoráveis à descriminalização somaram 16,1% e os neutros, 25,7%. O estudo aponta ainda que os homens são a maioria dos usuários a falar sobre o assunto na rede social. De todos os posts analisados, 63,9% foram feitos por eles, enquanto 36,1% tinham autoria de mulheres. O que dá conta de que são os homens, em sua maioria, que se colocam em campanha contra a descriminalização do aborto. Isso aí, eles, que em sua maioria são os que abandonam filhos ou não os registram e pior, que estupram e geram em corpos femininos gravidez não desejadas.

A pauta do aborto não revela apenas uma questão moral, revela a lógica da sociedade patriarcal em que o corpo feminino é secundarizado aos desejos, anseios e crenças masculinas.

É importante demarcar, também, que a discussão não é sobre legalizar o aborto, e sim descriminalizar, que significa, retirar as sanções penais de um ato.

Como o aborto é tratado como crime, a informação sobre o procedimento é restrita, limitada e as mulheres se sentem intimidadas para falar sobre o tema. Quando é preciso buscar um atendimento de saúde pública, antes ou após o procedimento, as mulheres tendem a evitar ao máximo o suporte em postos de saúde, pois temem ser denunciadas. E é também por essa razão que existem muitas mortes de mulheres que optam por interromper a gravidez. Curetagens mal feitas, ambientes inadequados, medo de buscar atendimento médico regular no SUS e a solidão da morte anunciada, seja por uma vida não desejada pela frente ou pelo falecimento do corpo.

A descriminalização é uma garantia de vida para as mulheres. É disso que se trata, de alguma maneira. Quem defende a vida deve pensar nas milhares de vidas femininas ceifadas em espaços clandestinos de aborto. Pensar, também, na violência à qual as mulheres são submetidas, quando sozinhas ou escondidas, precisam recorrer ao procedimento que, em grande número, cerca de 45% deles, é feito de maneira insegura. O aborto já vem matando mulheres e essas mortes parecem não comover o mais fiel pró-vida.

O Brasil, atualmente, conta com 40 serviços formais de aborto legal em hospitais públicos. Estas unidades prestam atendimento a mulheres grávidas vítimas de estupro ou em risco de vida, que são as condições que tornam o procedimento autorizado. Uma pesquisa realizada pelo IBOPE para mensurar a compreensão da população brasileira acerca de legislação sobre o aborto e os serviços de atendimento indica que quase metade da população brasileira desconhece a existência desses serviços.

É um dado fundamental para compreender o absurdo com que se trata o tema no país. Na prática, mesmo o aborto legalizado, é quase um serviço secreto que poucos conhecem. Isso quer dizer que quando as mulheres precisam desse procedimento, a maior parte delas não sabe para onde ir. Muitas peregrinam de atendimento em atendimento onde, não raras vezes, são constrangidas e pressionadas a desistirem do aborto. Reforço aqui, mulheres que buscam legalmente este serviço, ou seja, mulheres que foram estupradas ou que estão em risco de vida.  Ainda segundo a pesquisa IBOPE, existem 62 hospitais no Brasil credenciados ao Ministério da Saúde para fazer o aborto legal, mas somente 40 oferecem o atendimento de fato e, em alguns estados brasileiros como Roraima, Amapá, Tocantins, Piauí e Mato Grosso do Sul, nenhum hospital confirmou realizar o procedimento.

A criminalização do aborto tem matado milhares de mulheres, mas parece que isso não importa. O corpo feminino não importa. Ele pertence ao patriarcado e, quando porta um feto, pertence ao Estado que é dominado pelo patriarcado. Já que não é criminalizado abandonar o filho, dificilmente os homens, que em sua maioria o fazem quando não desejam ter filhos, passarão pelo constrangimento que as mulheres passam.

O corpo das mulheres costuma ser coisificado, seja na ordem do erotismo, do abuso ou do trabalho doméstico não remunerado. Também ao negar às mulheres o direito de decidir sobre sua gestação, é, sem dúvida nenhuma, relegar esse corpo a uma coisa, novamente. É violento, é autoritário e fere o princípio da dignidade da pessoa humana. Fere direitos.

Não é a lei que concede dignidade à pessoa humana, pois a dignidade é (ou deveria ser) inerente ao ser. Mas no caso das mulheres, nem a lei tem conferido ou preservado esse direito. O aborto é um assunto de saúde pública e a saúde é um direito e deve ser implementado e cumprido pelo Estado.