Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

O Brasil recebeu milhões de escravos. Foi através do esforço físico, da vida de cada um e de cada uma que esse país se construiu, que plantações de cana se formaram e que a colheita de algumas culturas se constituíram. O Brasil contemporâneo é formado pela morte de milhares de pessoas que trabalharam forçadas. Essa marca está no DNA do nosso país. As relações sociais nacionais foram construídas com violência, sangue e acordos entre a elite e o governo. E tem coisas que ainda não mudaram por aqui.

A notícia do resgate de 207 pessoas em situações desumanas trabalhando no Rio Grande do Sul na colheita da uva e no abate de frango faz lembrar que temos que discutir como funciona o mercado e como são feitas as relações no Brasil.

Assim como essas vítimas chegaram ao sul, milhares de pessoas negras foram arrancadas de sua terra natal e trazidas por traficantes. O crime dentro do crime sempre foi rentável. O tráfico de pessoas segue operante, o que muda um pouco é a logística dessa trama. Se antes eram trazidos violentamente, de maneira direta e crua, agora são trazidos numa narrativa de oportunidade de emprego e renda. A forma violenta como a pobreza aplaca as vidas no Brasil profundo faz com que pessoas saiam de suas cidades e, desesperadamente, acreditem em promessas que jamais serão cumpridas. A violência se dá no simbólico, mas também no real quando vivem de forma precária e completamente ilegal.

Pessoas que traficam pessoas é o que soa mais hediondo dentre os crimes, no meu sentimento. E até mesmo quando a escravidão era legal no Brasil colônia, o tráfico de escravos já era proibido. A abolição se deu em 1888, porém o tráfico já era proibido desde 1831. Ao que tudo indica, somos especialistas em não respeitar leis ou em entender que a lei não é para todos.

Historicamente, já se sabe que o tráfico era muito rentável no Brasil colônia e até mesmo os senhores de engenhos, os usineiros, ficavam amarrados a esse produto, digamos assim, pois dependiam da logística dos traficantes. Além de comprar pessoas de maneira ilegal para a época, o faziam para poder dar destino às suas mercadorias através dos mesmos navios.

Se olharmos para o passado brasileiro, podemos conferir que os vendedores de escravos formaram verdadeiras fortunas. Enquanto os usineiros viviam endividados e vivendo de subsídios e acordos com o governo, o dinheiro vivo corria no mercado do crime. A escravidão no Brasil tem uma marca singular e patológica nessas relações comerciais, nessa coisa chamada mercado.

O combate à escravidão e ao tráfico de escravos precisou acenar aos senhores com incentivos econômicos para emplacar, ou seja, o fim da escravidão para uma parte dos escravagistas é marcado por negociações e não por uma causa humanitária. Sinalizar isso é bastante importante, pois explica muito o Brasil que saiu das catacumbas nestes últimos anos. Marcar que somente com leis duras e algumas regalias fizeram a elite mundial, e também a brasileira, enxergar que algumas pessoas também são gente, sejam negras, mulheres, gays, indígenas ou crianças.

O terror que pudemos acompanhar nas notícias vindas do Rio grande do Sul que dão conta de narrar pessoas em situação de trabalho análogo à escravidão, ou seja, sem leis, sem respeito, em situação precária envolvendo empresa terceirizada que fornecia mão de obra a vinícolas e abatedouros de frango, é um modelo de negócio antigo e bastante alicerçado na formação das elites comerciais e industriais do país. Gente vale menos que produtos. Ninguém vale pelo que faz, afinal o trabalho não vale nada. As pessoas valem pelo que acumulam, novamente evidenciando que o que tem importância são as coisas. Um pensamento sistêmico colonial e escravagista. E esse recorte não é geográfico no Brasil. Esse desenho de negócio une Sul e Nordeste. É amargo, triste e ainda comum.

Entre 1995 e 2022, 58 mil brasileiros foram resgatados da escravidão contemporânea. No ano passado, somente em janeiro, 273 trabalhadores foram salvos em uma única ação realizada em Minas Gerais. O ano de 2023 pode bater esse recorde a começar por fevereiro, em que uma operação deflagrou o trabalho escravo em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Na ação, o proprietário da empresa, responsável por contratar esses trabalhadores, foi preso, pagou ele próprio a fiança imposta no valor de R$ 39.060 e foi liberado. Durante a operação, a fiscalização constatou condições insalubres na moradia coletiva dos trabalhadores, péssima limpeza e higiene do local. Foram apreendidos uma arma de choque e um spray de pimenta.

Os números do trabalho escravo no país, segundo o Ministério do Trabalho, vinham caindo até 2018, quando se registrou uma explosão de casos, cujo ápice foi em 2022. Para se ter uma ideia, em 2017, 645 pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão. Em 2018, o número de resgates passou a 1.113. Já em 2019, foram 1.054 pessoas resgatadas. Em 2020, foram 942 e, em 2021, foram 1.937 resgates. O ano de 2022, campeão das atrocidades até o momento, registrou 2.575 trabalhadores resgatados em 432 operações realizadas em todo Brasil.

É fundamental que fique claro que a situação encontrada recentemente no RS não é pontual e muito menos fruto de assistencialismo, como diz uma Associação empresarial gaúcha por meio de uma nota. Os anos de 2018 a 2022 foram recorde em situações de tortura e desumanidade a trabalhadores. As datas falam por si.

Diversos segmentos econômicos, digamos assim, já engordaram a lista da vergonha que nomeia empresas que tem parte de suas produções envolvida em péssimas condições de trabalho e em situação análoga à escravidão. Do agro ao tecno, direitos humanos são violados.

Não entendo que, numa elite empresarial que tanto valoriza o mérito, a moeda de troca pelo trabalho seja a tortura e a discriminação. Na verdade, eu entendo, mas não aceito. É a comprovação factual de que trabalho não tem valor, especialmente na elite do atraso que sempre que possível não quer pagar pelo que vale o trabalho. É a certeza de que a maioria das riquezas é construída com exploração.

Engana-se quem acha que somos formados por europeus colonizadores. Nós somos formados pela escravidão e essa herança escravocrata nos deu, também, um ódio aos pobres, principalmente por parte das elites e pela classe média. São esses grupos que perderam, ou acham que perderam quando o Estado e parte da sociedade olham para aqueles que mais precisam. É essa fatia da sociedade que quando explora, rouba ou fere leis, aponta para o Estado para falar que é de lá que vem a corrupção. Além de que, quando um governo se volta à população mais pobre para dar conta de programas sociais, essa elite que se forjou às custas da riqueza pública se revolta.

Vale lembrar que quando o Estado quer reforma agrária, ele tem que indenizar grandes proprietários de terra (leia-se também grileiros e posseiros), assim como a República precisou indenizar escravocratas para que esses cumprissem a lei da Abolição. Mas quando se fala em repasse de renda para quem passa fome, a bolsa cai, o mercado grita. Só quem continua sem direitos são os escravos, digo, os pobres. Porque é nesse tempo que trilha, ainda, a mentalidade da elite brasileira.

Chupa que é de uva! É disso que se trata.