Por Marta Dueñas, Jornalista 
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Como as políticas públicas e o preconceito matam diariamente os primeiros povos do Brasil

“Todo dia, era dia do índio! Mas agora eles só têm o dia 19 de abril.” O trecho da música de 1982, do Jorge Ben, famosa na voz de Baby Consuelo, já anunciava o esmagamento da cultura indígena por meio da desapropriação de terras, preconceito, esquecimento e falta de políticas reparadoras. O brasileiro virou as costas para seus povos originários. Esse país continente, que já existia antes de ser “descoberto” pelos colonizadores europeus, parece ter incorporado uma agenda colonial que avança há mais de 500 anos.

Cada vez mais urbanizada, mesmo que de maneira precária, a nossa sociedade se identifica mais com a submoradia presente nos bolsões de pobreza das cidades do que com os índios em seus territórios. O que nos leva para tão longe de nossas origens? Se antes era o preconceito e o desejo de “evolução” por meio de uma narrativa importada, agora podemos dizer que o distanciamento da sociedade com a realidade indígena se dá também pelos interesses do mercado e pela legislação.

O mais novo inimigo da comunidade indígena, o Projeto de Lei 490 vem tramitando nas esferas legislativas desde 2007. Em junho deste ano, no mesmo dia em que caiu o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles –  aquele que defendia que passasse a boiada sob a agenda ambiental – o texto foi aprovado na  Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal. Se aprovado na Câmara, vai ao Senado.

O PL propõe o fim das demarcações, a revisão de terras indígenas e a regularização do garimpo. Um combo de maldades que desestabiliza a política de preservação e reparação aos povos tradicionais brasileiros. Conhecido como “marco temporal”, a lei que tramita restringe os direitos constitucionais dos povos indígenas. De acordo com ela, essas populações só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. É uma interpretação do direito à terra defendida, não por acaso, por ruralistas e setores interessados na exploração de áreas ricas em minérios ou madeira.

Exigir posse ou disputa judicial na data é tapar os olhos para as inúmeras expulsões, remoções e violências históricas na luta de terras até a promulgação da Constituição. Além disso, desconsidera que a população indígena, tutelada pelo Estado até 1988, não entrava na justiça para lutar por seus direitos.

Por que odiamos os índios, considerando uma população de segunda importância cujas agendas não entram em consonância com as nossas? Como pode um kit de prejuízos jurídicos tramitar sem que nossa sociedade engrosse a luta em sua defesa?

Já não bastasse a pandemia ter dizimado grandes sábios desta cultura. O garimpo avança junto com as madeireiras. O gado avança sobre terras, direitos e a vida. A violência da sociedade contemporânea avança sobre os índios e é rebatizada de progresso, mesmo que o mundo enxergue o contrário e queira viver um movimento de volta às raízes e à natureza, na luta pelo clima e o planeta.

Para além dos direitos das populações tradicionais ao seu território e cultura, as reservas naturais não são dos indígenas. As florestas e rios são do planeta. A sociedade precisa olhar de maneira mais ampla e fazer a autocrítica sobre ocupação de território e relacionamento com o ambiente. Por que os territórios indígenas proporcionam qualidade de vida para a sociedade? Por conta da maneira com que as terras são utilizadas. Preservar as reservas significa cuidar do clima, do regime de chuvas, das florestas e da água. 

A defesa dos territórios indígenas significa a defesa da terra e o benefício dessa agenda extrapola a comunidade dos povos tradicionais. Logicamente há quem entenda que a mineração ou a indústria da madeira são mais úteis à sociedade urbana e do consumo e, portanto, podem avançar em qualquer território. Ainda que o desenvolvimento da sociedade atual esteja baseado na industrialização, no consumo e no mercado, e que a mineração, por exemplo, seja a base desse desenvolvimento provendo matéria prima para tudo que se precisa para viver na lógica urbana e na geração de emprego e renda, não se para para pensar o quê, quando, onde e quanto se pode e deve minerar. Quem dita essa agenda é a iniciativa privada, que nem sempre responde aos interesses coletivos ambientais. Até quando as pessoas vão ficar olhando o povo indígena defender sozinho a floresta? Talvez se tivéssemos um olhar menos utilitarista com o mundo nos preocuparíamos com a floresta para além do Instagram ou das férias de turismo ecológico. A floresta faria sentido como a vida, exatamente como o índio a vê.

Como diz o escritor Ailton Krenak, “precisamos urgentemente “parar de olhar o mundo como se fosse um supermercado” porque os estoques vão terminar e nós vamos nos consumir. O debate sobre terras indígenas é um debate sobre o direito à vida.