População quilombola luta pelo reconhecimento de suas terras
Por Luciana Piris, jornalista
A legitimidade de suas terras é garantida pela Constituição de 88, no Brasil são mais de 1,32 milhão de quilombolas, residentes em 1696 municípios
Segundo o Censo 2022, o Brasil tem 1,32 milhão de quilombolas. Essa população tem o direito de cultivar os costumes e as tradições. Esse fato foi reconhecido no Brasil pela Constituição Federal de 1988, no artigo 68.
Assim as terras de quilombos são territórios étnicos raciais com ocupação coletiva baseados na ancestralidade. Foram quase quatro séculos de escravidão. Agora, muitos quilombos lutam pelo reconhecimento de suas terras como uma reparação histórica.
Dos estados brasileiros, de acordo com o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a Bahia é o estado que tem a maior população de quilombolas, com 397 mil pessoas, com 29,9% da população total. Em seguida vem o estado do Maranhão com 20,26%. O processo não é tão fácil quanto parece. No Estado de São Paulo, de acordo com o INCRA, são 53 processos de titulação em andamento.
De acordo com Vercilene Francisco Dias, coordenadora do Jurídico da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos), os quilombos devem ser reconhecidos pela Fundação Quilombo dos Palmares para depois caminharem para o Incra ou mesmo a nível estadual, que regulamenta com o reconhecimento e mais alguns dados antropológicos para seguir com o processo de titulação das terras.”Os desafios das comunidades quilombolas são muitos. O principal é concretizar o artigo 68, que é regulamentado pelo decreto 4887. Mas não acontece. São mais de quatro mil entidades certificadas, mas poucas têm a titulação de suas terras”, analisa a coordenadora.
Assim acontece no Quilombo da Fazenda, localizado no litoral norte de Ubatuba, que caminha para fixar e regularizar seu território. São mais de duzentos anos que a comunidade quilombola habita a região. São cinco gerações da família que viveram no local cultivando sua cultura e ancestralidade.
Para a líder comunitária do Quilombo da Fazenda, Laura Braga, o local que antes compreendia 3883 mil hectares, agora são 494 hectares. “Começamos nossa luta em 2001 com a formação da Associação remanescente, seguimos com os processos no Itesp, no Incra e agora estamos com uma ação civil pública no Estado de São Paulo. Tudo começou quando houve o tombamento da região que incluía o Parque Estadual da Serra do Mar e fomos perdendo as áreas nas negociações com uma parte do município de Cubatão e o acesso à praia. Hoje, somos proibidos de pescar e plantar em nossas terras por causa da implantação do sistema agrofloresta”, revela a líder.
São mais de dez anos que perdura a regularização do Quilombo da Fazenda. A geração de renda do Quilombo da Fazenda era obtida através da plantação de mandioca. Hoje, a casa de farinha do Quilombo serve apenas para fins turísticos. “Nossa última farinhada realizada foi com a mandioca vinda de Minas Gerais. Nossa roda d’agua consegue produzir mais de 200 quilos de produto por dia. Com a roda d’ água sem poder funcionar, nossa forma de sustento foi e é prejudicada. Até que conseguimos com muita luta, em 2019, implantar o Roteiro Turístico de Base Comunitária”, detalha a líder.
Os entraves do Quilombo da Fazenda são muitos, vai além da regularização de suas terras. Mesmo que a constituição garanta o direito à educação diferenciada à comunidade quilombola, as crianças seguem impedidas de estudar na escola local porque frequentam a escola da Vila dos Pescadores ou a de Puruba. “Cabe aos pais e mães escolherem a melhor escola para seus filhos. Não ao Estado. É muito mais fácil que essas crianças e adolescentes estudem em nossa comunidade”, revela Laura.
Ao perguntar sobre o preconceito e discriminação, a líder comunitária completa que a discriminação e o preconceito deram uma trégua. “Quando olhamos para a desigualdade social e cultural, percebemos que vivemos também o preconceito ambiental. Porque, nos quilombolas, queremos ter o direito de construir nossas casas de pau a pique, de pescar para garantir a nossa sobrevivência e plantar nosso alimento. Vivemos aqui há 200 anos. Aqui está o nosso conhecimento, nossa origem e ancestralidade”, conclui.
“Assim como os homens têm o direito de construir os casarões no morro da praia, queremos ter o direito de construir nossas casas de pau a pique”, Laura Braga, lider comunitária do Quilombo da Fazenda.
A luta de gerações
A importância de ter a documentação foi um dos facilitadores para o Quilombo de Brotas, que está localizado em Itatiba, no interior do estado de São Paulo. A região cresceu nos últimos anos e loteamentos foram sendo construídos no entorno da área. E, claro, o mercado imobiliário tentou convencê-los a deixar o local.
No entanto, as terras do Quilombo de Brotas foram adquiridas há quatro gerações pela matriarca da família, Amélia, que trabalhou com o plantio e venda de eucaliptos para conseguir pagar a área. De acordo com a bisneta e líder comunitária da Associação Quilombola de Brotas, Vera Gamito, sua bisavó era uma pessoa muito boa que autorizava outras famílias a permanecerem no local até se estabilizarem. Tanto que hoje são mais de 48 famílias, sendo que 32 famílias são quilombolas remanescentes. “Foi tudo conseguido com muita luta e resistência. Somos herdeiros diretos, o que nos ajudou no reconhecimento, na persistência e na valorização de nossas terras”, declara.
O Quilombo de Brotas, agora, tem um estatuto dentro das diretrizes de sua comunidade, que especifica que só faz parte da diretoria quem tem vínculo consanguíneo. “Fomos aprendendo com nossos erros e lutamos. Os projetos que são implantados agora são realizados pela nossa equipe. Temos CNPJ e até uma conta bancaria”, esmiúça a líder comunitária.
Atualmente a Associação Quilombola de Brotas está em processo de finalização da titulação da área. E tem como base de sua economia o turismo local como principal fonte de renda. De acordo com Gamito, a nossa história foi vivida e vamos passando esses valores e costumes de geração em geração. Temos as festas, o Museu Quilombola e a Tenda de Umbanda, da década de 50.” As mulheres cozinham muito bem. E temos o artesanato de pintura de telhas que também contribui para a renda da comunidade”, esclarece a líder.
Para o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o Quilombo Brotas tem duas glebas de terra, uma que foi adquirida pelos seus ancestrais, no final do século XIX, e outra que pertencia a um particular. O fato de parte do território já ser da comunidade ajudou, no sentido de não haver conflitos fundiários (brigas por terra). “Assim, hoje temos duas ações de desapropriação correndo na justiça, uma da área que já pertencia aos antepassados e da outra área que estava em nome de um particular”, explica a entidade.
De acordo com Andrea João, técnica do Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo), existem muitos territórios sem regularização no país.” É uma questão fundiária, assim o Estado de São Paulo teve que pensar em um modo operante. Foi quando em 1997 foi decretada a Lei estadual 9757, que regulariza as terras quilombolas dentro de características específicas e, principalmente, concedem as terras devolutas que pertenciam ao Estado para essas comunidades. Mas não basta apenas ter ancestralidade quilombola. Uma análise detalhada é realizada para se concluir todo o processo”, revela.
O Incra trabalha para reconhecer as comunidades quilombolas e na regularização fundiária dos seus territórios. Primeiramente é realizado um estudo antropológico sobre a comunidade, no qual é definido qual é o tamanho do seu território. Em seguida, é realizado um estudo fundiário para saber quem são os proprietários legais dessa área. Posteriormente, é ajuizada uma ação de desapropriação dessas propriedades. Após a desapropriação, a área será titulada em nome da associação dos quilombolas.
Assim aconteceu com os Quilombos do Vale do Ribeira, que foi uma das regiões desbravadoras desse processo junto à Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo. A comunidade remanescente de Quilombola Ivaporunduva tem 400 anos de existência, de acordo com relatos e levantamentos históricos, e conseguiram o reconhecimento do Itesp em 1998 e a titulação de suas terras em 2003.
Hoje, são 29 quilombos na região que estão no processo de regularização de seus territórios. A fonte de renda dessa região é a agricultura tradicional, apicultura e a plantação de banana orgânica.
Em contrapartida, para o presidente do Incra, César Aldrighi, todos os dados coletados pelo IBGE “tiram da invisibilidade o povo quilombola” e são uma ferramenta importante para ajudar a reparar o que chama de “dívida” existente em relação à regularização fundiária dos territórios dessas comunidades. “A regularização fundiária de territórios quilombolas é uma das prioridades do Incra. Temos de fazer avançar uma política que nos últimos anos foi colocada em segundo plano”, afirma.
Ainda de acordo com a entidade, foram entregues, em 2023, 936 títulos às famílias quilombolas nos Estados de Minas Gerais e Sergipe. Vale lembrar que existem quilombos que foram sendo extintos pela sociedade como os localizados na cidade de São Paulo como o quilombo de Cidade Tiradentes, Bexiga e Pirituba.