A performer e artista, que está entre a mais premiada de todos os tempos, lançou dia 31 de julho seu novo álbum visual e despertou críticas da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz

Por Regina Fiore- SP
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Beyoncé Giselle Knowles-Carter tem 38 anos e uma carreira de 22. É uma das artistas mais aclamadas de todos os tempos, premiada com 22 Grammys ao longo da carreira, o prêmio mais importante da indústria musical. Acumula mais de 600 prêmios conquistados, foi apontada pela revista Time como uma das mulheres mais influentes de todos os tempos e está entre a lista dos artistas mais ricos da Forbes.

Já foi capa de revistas aclamadas, lançou coleções de perfumes e roupas, suas turnês lotam estádios e está na vanguarda das produções musicais desde que fazia parte do grupo de R&B Music Destiny’s Child. É casada com Shawn Jay-Z Carter, um dos rappers mais premiados de todos os tempos e considerado um gênio em seu estilo musical, além de ser o único músico na lista de bilionários da Forbes.

São 8 álbuns de estúdio assinados pela performer, que tem abraçado com cada vez mais força sua ancestralidade africana e sua identificação como afro-americana. Beyoncé sempre foi intensamente criticada pela suposta contradição de militar pelo fim do racismo e ao mesmo tempo estar entre um dos símbolos da cultura capitalista e do show bizz. Mas criticada por quem?

 

 

Seu mais recente trabalho, “Black is King”, foi concebido após sua participação na adaptação live action para o filme “O Rei Leão”, dos estúdios Disney. Beyoncé lançou o álbum “The Gift”, no qual ela faz também releituras da trilha sonora do filme e conta a história do ponto de vista da ancestralidade africana do povo negro. O álbum foi produzido e composto em parceria com grandes nomes da música africana e afro-americana, como Burna Boy, Jay-Z, Childish Gambino, Pharrell Williams, Kendrick Lamar, Tierra Whack, Wizkid, Shatta Wale, Tiwa Savage, Tekno, Yemi Alade, Busiswa, Salatiel, entre outros.

Para o álbum visual Black is King, ela também buscou artistas que trouxessem o afrofuturismo como principal condutor, ou seja, a ideia de retomar a história das populações africanas negras que foram escravizadas e recontar a diáspora africana por meio de sua visão, como afro-americana. O afrofuturismo não é apenas um resgate de como a história da população negra foi contada até hoje, mas principalmente uma forma de construir um novo futuro a partir de uma nova perspectiva histórica sobre as populações negras.

De acordo com Carolina Pinto, advogada negra com quem conversei sobre este artigo, o afrofuturismo foi o ponto de partida de Black is King, que não trata do passado, por mais que traga referências de ancestralidade e de religiões de matrizes africanas, mas retrata o futuro. “É uma nova perspectiva de mundo que não parte da dor, da tristeza, da pobreza, como a África quase sempre é retratada. É saber quem somos a partir do nosso valor”.

Carolina ainda aponta a importância da perspectiva matriarcal quando Beyoncé conta a história a partir da visão da personagem Nala. As narrativas matriarcais, onde a mulher  (ou fêmea, nesse caso) é o personagem forte e central da história são muito mais comuns entre as culturas africanas, já que o patriarcado é uma estrutura que nasceu entre os homens brancos e é perpetuado por eles até hoje.

O trabalho traz não só um novo conceito para a história de “O Rei Leão”, mas principalmente um novo conceito sobre o que é ser negro, o que é a ancestralidade africana e, principalmente, o que é para uma pessoa negra tomar de volta a narrativa de sua história. Para isso, Beyoncé abusa de looks da alta costura, referências antropológicas e culturais, coreografias que resgatam o ancestral e o contemporâneo, além de paisagens de tirar o fôlego.

Dois dias depois do lançamento de Black is King, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz publicou em um dos maiores jornais do país uma crítica que trazia vários momentos elogiosos ao trabalho de Beyoncé, mas que foi racista em muitos pontos, nos trazendo para a reflexão o papel da branquitude no movimento antirracista.

Lilia é uma historiadora e antropóloga premiada, doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo e professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na mesma universidade. Mas esqueceu-se que é branca e, como branca, possui perspectivas racistas acerca da obra de Beyoncé. Isso fica explícito em algumas partes do texto, começando pelo título.

“Filme de Beyoncé erra ao glamourizar negritude com estampa de oncinha”. A frase deixa várias premissas racistas em aberto: primeiro, que a negritude não pode ser glamurosa e quando é glamourizada, é um erro de quem glamouriza. Segundo que a estampa de oncinha que ela cita está em vários figurinos (da alta costura) da cantora e de seus bailarinos porque ela está recontando uma história cuja referência nasceu da savana africana, com animais que fazem parte desse ambiente.

Mas de maneira nenhuma ela reduz a história a isso. Dos mais de 50 figurinos que a própria Beyoncé usa durante o filme, apenas alguns têm estampas de animais, peças que sim, são glamourosas e cujo acesso é negado a grande parte da população negra, como se as roupas de alta costura não fossem permitida para as mulheres negras, como Beyoncé.

Vem a linha fina do texto: “Diva pop precisa entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”. Nessa parte, Lilia nem esconde que está tentando ensinar a uma das mulheres negras mais poderosas do mundo como lutar contra o racismo, sendo que o que ela fez durante toda sua vida e carreira apenas por ser uma mulher afro-americana sobrevivendo em uma indústria extremamente racista.

Desqualifica não só o trabalho da cantora, mas também a forma como o trabalho é feito e, principalmente, deslegitima a tentativa de recuperação de poder, inclusive econômico, pela qual a população negra luta e que lhe foi negada depois de 400 anos de escravidão. Como se uma mulher negra não pudesse usufruir da pompa, brilho e cristal, assim como as mulheres brancas usufruem à séculos.

Lilia fecha o texto com a frase: “Quem sabe seja a hora de Beyoncé sair um pouco de sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez, e em outro sentido”. Literalmente, para que Lilia se tranquilize, o filme foi gravado bem além da sala de jantar da cantora: Gana, Nigéria, Grand Canyon, Nova York, Los Angeles, África do Sul, Londres e Bélgica.

Figurativamente, é importante lembrar que a população negra nunca teve, ao longo da história, acesso à sala de jantar. Os espaços das pessoas que foram escravizadas se resumia às áreas de serviço, como a cozinha. Por isso, ainda que Beyoncé se limitasse a filmar dentro da sala de jantar de sua mansão de quase US$ 100 milhões, seria revolucionário e empoderador para qualquer homem ou mulher negra que assistisse.

De fato, Lilia não poderia tecer críticas sobre “Black is KIng” com precisão ou coerência. O filme não foi feito para ela, foi feito para que as pessoas negras e todos descendentes de pessoas que foram escravizadas durante a diáspora africana se vissem nos cenários, figurinos, danças, músicas e, por que não, na pompa, brilho e cristal.