Por: Marta Dueñas, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Esse país cristão, temente a Deus, defensor da família e dos bons costumes consegue, apesar de todo esse fervor, ser o quinto país em violência contra mulher no mundo, e o quarto em número de casamentos infantis. Nem mesmo toda essa potência religiosa que se coloca como pauta eleitoral definitiva tem a força para deter os 180 estupros diários sofridos por mulheres no Brasil. 

Somos, portanto, um país religioso, temente a Deus, crente, estuprador, violento, que abandona a família, que casa com novinha e que bate na mulher. Cabe tudo isso no menu do Brasil. É impressionante. O brasileiro é um moralista que se movimenta por fetiches. Que cobra mais que entrega. Que teme o fim (e talvez não a Deus) acreditando que é ali, na reta final, que prestamos conta da vida. Qual é a conta que o brasileiro não fecha? Ai que medo. Ai que loucura. O que será que vai aparecer quando passarmos a régua em tudo isso? 

Ama a família a ponto de querer comê-la. Quer férias num paraíso natural, mas sem contato com bichos. Quer viver intensamente desde que tudo possa terminar numa foto, como diria Susan Sontag. 

E como se não bastasse a crise estética provisionada pela onda do movimento de ultra direita nacionalista, vivemos uma mazela que ainda não sei narrar, tampouco desenhar. Mas sei que está intimamente ligada ao que vivemos politica e economicamente. Uma era de fetichização. Algo entre tudo se tornar instagramável com o desejo de uma realidade paralela, idealizada, inexistente.  

Um movimento opressor e perverso; pista inegável da conexão com a atualidade política. A capacidade de conexão e ampliação que a tecnologia nos trouxe agora se torna um movimento que diminui, copia, massacra. A gente pensa como Instagram, reduz um texto a algo tuitável, transforma a natureza num condomínio com janelas espelhadas. 

As redes sociais que ajudaram a elegeram o pior presidente do Brasil, agora estancam a pulsação da cultura, da comunicação, da arte, do turismo e acho que até da medicina. Essa verdadeira ardência por conteúdos de consumo rápido, com filtros, cores e músicas tem sido capaz de perverter a ordem de muitos sentidos. Redes sociais, internet e fetichismo. Me soa tão familiar. 

Não muito tempo atrás, os registros interessantes eram aqueles únicos. Um cantinho que outros não ousaram ir, um lugar pouco descoberto, um livro ainda não colocado na vitrine, um vestido sem outros iguais. Uma cena captada por olhos atentos ao sublime. Autoria. Autenticidade. Criação. O jogo parece que virou e agora é imperativo compartilhar algo numa fórmula e com a mesma trilha sonora. Mesmo a turma cool caiu no lugar comum. Essa mania de ser meio tropicalista, meio tupuniquim recriando uma atmosfera Brasil como se o caldo do país não fosse belo suficiente. O que sobrar de tudo isso será nosso troco. 

Enquanto assistimos o número de feminicídio aumentar no Brasil, parte da nação está assustada com a possibilidade de fechamento de igrejas (quando na verdade o número só aumenta, das igrejas e da violência). Dá pra sentir esse nó entre desejo e fantasia de forma distópica? Esse descolamento da realidade no consumo diário de informações surrealista. A crise é estética porque já é política, moral e social. Enquanto a família de bem teme o banheiro unissex, a maior das escolas do país não tem banheiro algum!

O fetiche está esquartejando a realidade. Lógico, a gente só quer consumir uma parte das coisas. Só a parte que nos interessa. Fico com a beleza dos coqueirais enquanto a pobreza e o lixo eu corto da foto. Posto meu braço tatuado pegando uma tapioca bem num filtro “verão dourado”, enquanto a fome bate na porta da população nordestina. Diferente é ser um pouco menos igual.

O consumo fetichista é bem perigoso. Um movimento colonialista que vai criar novas maneiras de extermínio e dominação. Pouco se quer saber do todo, do entorno. Que para além de ser vazio, é violento. 

Essa mecanização do esvaziamento da cultura, da supressão da pluralidade vai perpetuando a força desse grupo cuja identidade é assustadora e depois não sabemos de onde vem. Como se não conhecêssemos quem acreditou na existência da mamadeira de piroca. Enquanto alguns tentavam entender onde esse absurdo levaria, outros compartilhavam a figurinha com medo de encontrar uma em sua própria casa. Desejo? 

É impressionante como a ordem é subvertida. Casos de pedofilia revelados por quem apontava o dedo contra esse crime. Revelação de amantes e assassinatos entre os mais fervorosos defensores da família. Bufões da moral cheios de segredos. Estamos um pouco como a Terra do Nunca onde o fio da história se perde no fetiche. Onde perdemos um pouco de tudo justamente quando encontramos aquilo que parece ser o ouro do tolo: o protagonismo do detalhe. O micro se tornou um império, seja por adequação a linguagem ou para atender paladares limitados. A realidade com toda sua complexidade perdeu sabor, não parece interessante. Corta, limita e filtra. É mais fácil deglutir micro pedaços pouco importando perder o gosto ou o gozo.

Brasil atual, terra de santos fetiches e um cinza tão colorido quanto infeliz.