O ódio de Bolsonaro tem destino, gênero e profissão
Por: Haline Farias, jornalista
E-mail: haline.farias@muheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Houve mais agressões às mulheres jornalistas nos três anos de governo Bolsonaro do que as acumuladas em quase uma década, entre 2010 e 2018
Agredir, afrontar e quase demonizar a imprensa livre faz parte da gestão bolsonarista. Essa é uma das estratégias desse governo para minar a democracia e seus instrumentos, uma vez que a mídia possui papel de fiscalizadora e vigilante do exercício do poder, e de informar sobre à população. Para além da recusa em responder algumas perguntas, ofender e intimidar jornalistas se tornou uma prática recorrente nos últimos anos, que conta com a validação e participação do atual presidente. Hostilizar a imprensa e seus profissionais foi prática na campanha de Bolsonaro em 2018, e depois transformou-se em uma agenda e política de governo, com ele já na presidência.
A violência contra os jornalistas fomentada por Bolsonaro foi categorizada como “descredibilização da imprensa”. Samira de Castro, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e membro do Comitê Executivo do Conselho de Gênero da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), afirma que essa forma de agir propositalmente tentando desqualificar o jornalismo profissional, tem como objetivo “silenciar a categoria para que apenas a sua narrativa dos fatos prevaleça. Ou seja: Bolsonaro quer tirar da sociedade o direito de ser informada.”
As agressões aos/às jornalistas sempre ocorreram. Cláudia Lago, que é graduada em Jornalismo (Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero), mestre em Antropologia Social (Universidade Federal de Santa Catarina) e doutora em Ciências da Comunicação (Universidade de São Paulo), conta que em todo o mundo as agressões estão ligadas a ideologias de extrema direita, e o crescimento dos movimentos e partidos da direita os tornaram atores políticos de destaque, fazendo com que os ataques sejam mais frequentes, violentos e explícitos. Isso aliado ainda ao processo de construção e disseminação de fake news e desinformação, que andam juntas. Foi o que ocorreu no Brasil: a chegada de uma extrema direita ao poder do governo levou para o momento crítico o qual a imprensa se encontra.
Rafaela Sinderski é responsável pelos monitoramentos de ataques gerais e violência e gênero contra jornalistas na Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), e conta que, desde 2019, a associação monitora de maneira sistemática os ataques contra jornalistas, meios de comunicação e contra a imprensa como um todo. Os dados revelam que o cenário brasileiro tem se tornado cada vez mais hostil para comunicadores. Entre 2020 e 2021, houve um crescimento de 23,4% nos ataques, e até setembro de 2022, o aumento foi de 19,8% (considerando o mesmo período de 2021).
Nesse contexto, somado às características sexista, machista e misógina do bolsonarismo, as mulheres jornalistas se tornaram alvos duplos e, então, vítimas frequentes deste mandato completamente intolerante, que procura intimidá-las, ferir sua credibilidade e desestabilizá-las.
Mais de 50 agressões com viés de gênero já foram registradas em 2022, segundo o levantamento da Abraji. O número expressa a dificuldade que mulheres repórteres e colunistas têm enfrentado para exercer plenamente com respeito suas profissões, sendo alvos de hostilidades. Cerca de 47% dos casos se refere a ataques à reputação e à moral, utilizando a aparência, a sexualidade ou traços sexistas de personalidade para desrespeitar e atacar. Destaca-se também que em 43% dos alertas monitorados pela Abraji, a vítima faz a cobertura de temas políticos.
É perceptível que a hostilidade se intensifica em razão de outros marcadores sociais, para além de gênero, como: religião, raça/etnia, orientação sexual etc. A presidente da Abraji, Katia Brembatti, aponta que os dados obtidos pela associação indicam que os ataques são mais agressivos, violentos e baixos principalmente com as mulheres jornalistas negras.
Ela também expõe que dificilmente os comentários são questionando algum aspecto da matéria, na qual algum equívoco é apontado, o que, de acordo com Katia, seria legítimo. Porém, normalmente abordam alguma questão da aparência, fazem insinuações e “piadinhas que não são piadas, são agressões, sempre distorcendo e mirando na pessoa e não no conteúdo […]”.
Os ataques aos homens jornalistas existem e são seríssimos, mas são de outra ordem, segundo Cláudia, que percebe que as mulheres jornalistas sofrem, durante o exercício da sua profissão, ataques que sempre são feitos às mulheres, dentro ou fora da imprensa. “Junta ao ataque à profissional, o ataque que tem a ver com o fato de ser mulher […] é atacada porque ela não devia estar naquele lugar […] o tempo inteiro fazendo menções à questão da sexualidade, questões físicas, a família dela também é atacada […]”.
Não é por acaso que as ofensas e a agressividade apele ao gênero e à sexualidade: vivemos em uma sociedades com valores conservadores, odiosos e preconceituosos, e isso tem ficado cada vez mais explícito. Os ataques sofridos pelas mulheres jornalistas são sérios e violentíssimos, colocam em risco a integridade física e mental dessas profissionais, causam danos à reputação, e, muitas vezes, os dados pessoais são expostos na internet.
Um histórico de misoginia e machismo
Jair Bolsonaro faz questão de demonstrar seu desprezo, ódio e descaso com as mulheres. Samira de Castro comenta que, ao longo dos 30 anos de vida pública, ele se destacou por seu comportamento machista (“dei uma fraquejada”), misógino (“só não te estupro porque você não merece”) e sexista (“ela quis dar o furo pra ele”). E quando o assunto é as mulheres jornalistas, o atual presidente não mede esforços para agredi-las verbalmente, colocando em prova a reputação, questionando a capacidade intelectual e atacando questões de gênero e morais.
É de conhecimento público o extenso histórico de agressões do presidente às mulheres jornalistas. Niara de Oliveira, Delegada Regional de Pelotas do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul (Sindjors), relembra que essa é uma prática comum do Bolsonaro como figura pública, e o denomina como “um misógino conhecido de longa data”, e acrescenta:
“Ele não tem o menor decoro para ocupar o cargo que ocupa. Não aceita críticas, então como que ele vai responder perguntas? […] o rosto da imprensa é cada vez mais um rosto nosso, um rosto feminino e isso o agride profundamente, pois ele não aceita ser criticado e muito menos por uma mulher.”
Fora (d)as estatísticas: o que tem sido feito? Qual o desdobramento?
O cenário é dramático, e causa medo e angustia às jornalistas. Para Claudia, continuando dessa maneira, chegaremos a uma inflexão ainda maior nesse autoritarismo que temos vivido. “A gente tem visto o autoritarismo se ampliar na cena política e social brasileira nos últimos anos. Então, se as coisas continuarem desse jeito, talvez a gente vá parar em um lugar muito ruim, mais do que nós já estamos.”
Todo esse autoritarismo e violência da direita tem como objetivo deslegitimar a imprensa e as mulheres jornalistas, e calá-las, “ao mesmo tempo, fazer com que todo mundo se organize em cima dessa coisa de atacar alguém, ter um inimigo agremia as pessoas que fazem parte do núcleo dessa extrema direita revoltante que a gente tem no Brasil!”, completa Claudia. Os ataques que são fomentados diretamente pela figura que tem (des)governado o país, não acabam no momento em que ocorrem, os seguidores do bolsonarismo reverberam e amplificam nas redes sociais e também nas ruas de forma violenta.
O que essas mulheres vêm sofrendo e estão expostas não pode ser só mais números, só mais uma história de uma mulher jornalista hostilizada. Os casos precisam repercutir e ganhar mais notoriedade, e mais importante: as mulheres jornalistas precisam ser acolhidas e se sentirem seguras trabalhando. Claudia conta que tem sido feita muita coisa para a proteção das profissionais, especialmente em nível internacional, em que há grupos que atuam com a questão dos direitos humanos, ligados à ONU, que estão trabalhando especificamente com os ataques contra as mulheres jornalistas. Além de conferências de grupos de pesquisas e iniciativas no Brasil de grupos/coletivos de mulheres jornalistas.
O lançamento de relatórios e pesquisas é fundamental para voltar a atenção das pessoas para o assunto. Samira destaca a importância desses documentos, como os relatórios da Fenaj, que auxiliam a “medir a temperatura” para o exercício profissional no país. Além da Fenaj, há também outras entidades de classe como a Abraji, e organizações não governamentais, como Artigo 19 e Repórteres Sem Fronteiras, que produzem essas informações com frequência.
Durante o ano 2021, a Abraji recebeu o apoio do Global Media Defence Fund da Unesco para desenvolver uma pesquisa de monitoramento de violência de gênero contra jornalistas. Rafaela conta que, na elaboração da metodologia do projeto, surgiu a ideia e a necessidade de fazer algumas parcerias com organizações que já estão bem estabelecidas e são conhecidas pelo trabalho com jornalismo, pela defesa da liberdade de imprensa e pelo trabalho com questões de gênero. Isso em razão da violência contra jornalistas ser, em maioria, subnotificada, o que se agrava quando a gente fala de violência de gênero contra mulheres jornalistas.
As parcerias, que têm funcionado muito bem, tem como objetivo driblar a questão das subnotificações. Sempre que tiverem contato com algum caso de ataque à mulher jornalista ou de ataque de gênero e violência de gênero direcionado à jornalista, o parceiro deve passá-lo para a Abraji para que a associação reporte e acrescente no monitoramento. O Instituto Mulheres Jornalistas, um veículo que apoia o jornalismo feito por mulheres e defende a luta contra os ataques que a categoria sofre, é um dos parceiros da Abraji nesta causa.
O monitoramento pode ser encontrado no site https://violenciagenerojornalismo.org.br/, que concentra o relatório completo do monitoramento de 2021 e os dados dos ataques registrados contra mulheres jornalistas e ataques de gênero contra profissionais de imprensa de modo geral em 2022. Os dados são atualizados mensalmente, e ainda é possível ver quantos deles eram discursos estigmatizantes, o perfil das vítimas, dos agressores e das agressões.
É importante que as jornalistas mulheres saibam que têm a quem recorrer e precisam seguir denunciando. Niara salienta que tanto os sindicatos de jornalistas nos estados quanto a Fenaj estão à disposição delas, independente de estarem sindicalizados ou terem a carteira da federação. “Precisam entender que essas entidades estão aí na proteção e no amparo dos trabalhadores da imprensa.”
Niara ainda revela que quem mais investiga e as matérias de maior repercussão de investigação sobre essa situação são jornalistas mulheres, e pontua algo que vem a assustando: “a gente não encontra nos jornalistas homens da grande imprensa, os ditos formadores de opinião, defesa da gente. Não encontramos na palavra individual a repressão devida e a condenação dessas atitudes”. Além disso, ela comenta que enxerga a imprensa agindo de modo condescendente, em que os veículos têm um papel que deveriam desempenhar na proteção de suas funcionárias, mas não desempenham. “Desde o início, não criticaram o presidente como deveriam, com a veemência necessária e isso tudo acabou que nos trouxe até aqui. Agora estamos em uma situação extrema, em que um ataque físico pode acontecer a qualquer momento.”
Samira destaca a necessidade e importância de trabalhar com toda a sociedade para essa cultura de violência que está imposta seja superada, “começando pela própria categoria, que precisa criar o hábito de denunciar a violência sofrida ao seu Sindicato, à FENAJ, ao seu empregador, às autoridades constituídas do Estado”. Ainda é necessário também, e urgente, que os sujeitos que “agridem, intimidam, censuram e cerceiam a liberdade de imprensa e de expressão no país” sejam responsabilizados.
A presidente da Fenaj acrescenta: “Temos que garantir que o Ministério Público possa fazer seus inquéritos e que a Polícia investigue as ameaças, bem como que a justiça puna os responsáveis. Além disso, precisamos adotar uma lógica de prevenção à violência e instituir políticas públicas de proteção para jornalistas e comunicadores.”
As jornalistas mulheres, em especial as que cobrem política, vêm convivendo com o medo de exercer sua profissão com liberdade e respeito. Não podem apenas se preocupar com o trabalho, há o desgaste de conviver com o temor de serem hostilizadas. Diante de um momento de eleições, tudo fica ainda mais inflamado e perigoso, toda uma ansiedade é gerada, principalmente com a chance desse governo continuar no poder. Claudia Lago comenta que, infelizmente, independente de quem ganhe as eleições, esses ataques continuarão a acontecer.
“Se esse projeto continua, consegue ficar mais quatro anos, a gente vai ter o acirramento de tudo isso que a gente já viu nesses últimos quatro anos. Não tem como sair disso, vamos ter o acirramento da violência e dos ataques, ter isso com muito mais força e muito mais consolidado. Se não vencer, vamos continuar tendo que lidar com essa problemática por muito tempo, pois vivemos em uma sociedade extremamente conservadora e desigual.”
Essa lógica agressiva, de que a imprensa é inimiga e mulheres jornalistas merecem ser menosprezadas, já está enraizada e, infelizmente, deu certo. “Vai criando um hábito, uma cultura de desrespeito e a gente tem visto os resultados disso. Depois do Bolsonaro, por exemplo, hostilizar e atacar a Vera Magalhães em um debate, no debate seguinte um deputado bolsonarista na plateia já se sentiu no direito de atacá-la também”, explica Niara. Ela ainda complementa com preocupação que, se acontece com jornalistas do nível e do alcance de visibilidade da Vera magalhães, imagine o que não ocorre com as outras, com as jornalistas desconhecidas, “são muitos os relatos que a gente recebe, desde pequenos empurrões, xingamentos de desrespeito […]”.
Mesmo com notas de repúdio e matérias sendo feitas, Niara considera que ainda é insuficiente, é preciso ir além de falar sobre. “Está faltando as entidades e a imprensa se reunirem, fazer uma espécie de ação coletiva […] em função da gravidade e da quantidade de casos que vêm se acumulando. Não dá para deixar passar, é um período muito difícil […] não estou sendo contra as notas de repúdio, muito pelo contrário, tem que fazer, tem que se manifestar […] mas tem sido insuficiente, a gente não consegue evitar que novos casos aconteçam […] É preciso ir além da coisa da palavra, é preciso reunir as entidades, como a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), a Abraji, sindicatos […] e uma ação conjunta com a OAB, talvez […].”
Estamos diante de uma situação que é sinônimo de um gigantesco retrocesso, não só para as mulheres e/ou para a imprensa, mas também para nossa política e a sociedade como um todo, a história de um país. Muito se comenta, mas a sensação, principalmente para nós mulheres jornalistas, é de que se normalizou. É mais um ataque que vão noticiar, seguido de outro ataque e a iminência de ser a próxima. Não há a repercussão necessária, nem causa a indignação que deveria e as ações efetivas são poucas, em vista da urgência de reverter o que der de toda essa violência de Jair Bolsonaro, que tem contaminado uma parcela significativa da população brasileira.
Uma autocensura, em detrimento do medo, caminha entre as consequências traumatizantes que ficam dessa hostilidade. Mas ELE NÃO pode nos calar, nem vai. A face do jornalismo é em sua maioria das mulheres, 58% dos jornalistas se identificam com o gênero feminino, de acordo com a pesquisa realizada pela Universidade Federal de Santa Catarina em 2021. Silenciar essas mulheres é impedir a liberdade de imprensa e o direito de acesso à informação.