O Catar não é aqui
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Que Copa é essa onde reinam preconceitos, violência, assédio e controle de informações? Uma Copa como outra qualquer. A pergunta é: que FIFA é essa que ano a ano promove eventos esportivos como forma de sustentar a política excludente e voraz neoliberal lavando a corrupção por meio do futebol?
Não adianta ficarmos espantados com a Copa no Catar. Como muito bem mencionou Adriana Buarque em sua matéria sobre a Copa no site Instituto Mulheres Jornalistas, essa escolha para sediar o mundial de futebol já tem quase dez anos. E a FIFA não erra em campo: usa e abusa da popularidade do esporte no mundo para desenhar uma jornada vencedora no mercado favorecendo e sendo favorecida por meio de acordos comerciais, políticos que passam por cima da pauta social.
Tenho a sensação que COP27 e COPA 2022 andaram de mãos dadas por algumas estratégias ainda que com missões completamente diferentes. A COP, da ONU, no Egito, também teve muita ação midiática, ocorreu em território de pouca transparência e muitos preconceitos. O Egito, por exemplo, proíbe manifestações públicas e usa de força policial para dispersar qualquer grupamento que exceda 10 pessoas na rua. A Conferência do Clima ocorreu num país que limita direitos humanos fundamentais como a expressão, atuação de ONGs e Cooperações internacionais. O que, por sua vez, fere um dos pilares da COP que é a participação social. A pressão da sociedade civil é fundamental, são as vozes que formam massa crítica e avançam em conquistas para o clima. O ativismo é parte das principais e mais importantes Conferências.
De mãos dadas nas práticas (ruins) de mercado como greenwashing e sportwashing, ainda que por caminhos diferentes, cada evento deixará rastros e legados. Vou torcer que a Copa no Catar deixe ganhos para além de campeões. Creio que a COP no Egito levou a atenção internacional para o tema da violação de direitos humanos. Acompanhar, denunciar e dar voz a jornalistas e ativistas é o mínimo. Mas e no Catar?
O que levou a FIFA a escolher esse destino sede? Bem, a FIFA já promoveu mundiais em países em plena ditadura militar como na Argentina nos anos 70, na Itália fascista de Mussolini, na Alemanha nazista de Hitler ou, ainda, como o último mundial, na Rússia não menos bélica e violenta com pessoas e nações. A FIFA nunca se opôs a promover o poderoso evento de futebol em países com ditaduras, guerras ou históricos de violação aos direitos humanos. Essa não é uma agenda da FIFA e é preciso estar ciente disso, o que não significa calar ou concordar. Saber que a promoção do mundial passa em paralelo a qualquer agenda social e, com isso em mente, tomar decisões com relação ao espaço do futebol no imaginário e no orçamento no mundo. Não é à toa que muitos jogadores, e destaco os brasileiros, pouco se importam com assuntos de sua própria história como pobreza, fome, analfabetismo e racismo. Outros tantos são acusados de estupro, sonegação e envolvimento com tráfico. Tampouco aqui criminalizo o futebol. O tema é a política que dá formato e traz dinheiro a esse esporte que é machista e bebe direto da fonte do patriarcado.
A Copa já está rolando e seja lá o clima dela, pra mim totalmente fora de sintonia, até o momento os fatos mais marcantes foram as milhares de mortes de trabalhadores explorados e precarizados na construção das estruturas do mundial. A perseguição à comunidade LGBTQI+ a ponto da FIFA proibir o uso da braçadeira dos capitães com os dizeres “one love”, e a perseguição das autoridades locais a uma bandeira de Pernambuco por conta do arco-íris. Essa ainda não é a Copa dos gols, enquanto imprensa for reprimida, pessoas presas ou violentadas. Mas não vamos deixar de ver algumas posições que oxigenam o evento como a ex-jogadora e comentarista da BBC Sport, Alex Scott, que desafiou as regras conservadoras e entrou ao vivo usando a braçadeira “proibidona”. Vamos respirar com as mulheres iranianas que são proibidas a frequentarem estádios em seu país mas compareceram à Copa e protestaram por seus direitos. Um suspiro com as mulheres jornalistas e comentaristas que estreiam ou consolidam suas carreiras na Copa e com a participação feminina na arbitragem. A FIFA anunciou seis mulheres para apitar os jogos do Mundial e isso é inédito. Fiquemos também com estes (ainda pequenos) avanços. Porque a jornada tem que evoluir. E é preciso aplaudir esse movimento um tanto paradoxal nesta edição sediada num país que coloca tantas restrições às mulheres. É pouco ainda, mas está aí.
O Catar não deveria ser surpresa, mas a pauta humana não pode sair do nosso radar, sejamos torcedores de futebol ou não. A Copa desse ano para os brasileiros começa com o desafio de vestir a camisa da seleção sem fazer bloqueios ou pedir intervenção extraterrestre. Enquanto uma parte faz as pazes com as simbólicas cores da nação, outros intensificam insultos e aprofundam preconceitos e crimes contra as pessoas. O Catar não é aqui, mas o Brasil verde e amarelo odeia mulheres e gays a tal ponto que os mata massivamente. Somos um país democrático cujos índices de violência são vergonhosos.
No Catar, a homossexualidade foi comparada a uma doença mental, no Brasil já foi dito que é melhor um filho morto a gay. Essa não é uma defesa ao Catar, é um fio para a gente lembrar quando pensa em futebol, em Copa e em direitos humanos. É um fio para puxar até chegar na FIFA, no conservadorismo e nos descaminhos do neoliberalismo que leva ao extremo qualquer segmento: cultura, esporte, industrias e mineração. Não é o que, é como.
Não é o Catar. É a FIFA.