Passados quase dois séculos após a independência, Brasil ainda vive um processo de construção de sua real identidade 

Comentarista Melissa Rocha- RJ
melissa.rocha@mulheresjornalistas.com

Celebrou-se nesta semana o feriado do Sete de Setembro, data que marca o dia em que, há 198 anos, o Brasil declarou sua independência de Portugal.  

Como é de praxe, a data veio acompanhada de um pronunciamento oficial do presidente da República. Nele, dentre outras coisas, Jair Bolsonaro exaltou a identidade nacional forjada na miscigenação e citou o golpe de 1964 como um ato tomado em resposta a um clamor popular. 

Difícil imaginar uma versão mais fantasiosa da história brasileira do que a exposta pelo presidente em seu pronunciamento. A começar pelo fato de que a dita identidade nacional calcada na miscigenação não foi um processo de integração suave e patriótico, como ilustrou o presidente. Na verdade, foi um processo violento, no qual brancos de ascendência europeia exerceram um papel de dominação sobre negros e indígenas. Esse processo de dominação até hoje reflete em um cenário no qual brancos mantêm vantagem em diferentes indicadores sociais. 

Em contraponto, a conscientização em torno dessa realidade semeou uma luta por mudança, que obteve avanços significativos nas últimas décadas. Um exemplo dessas conquistas pode ser conferido no campo da educação – área que é uma das principais fomentadoras da mobilidade social, crucial para reverter os impactos da herança escravocrata do país. 

A implementação de cotas raciais nas universidades brasileiras, no início dos anos 2000, ampliou o acesso de pretos e pardos nas instituições. Segundo uma pesquisa divulgada em novembro do ano passado, pelo IBGE, o percentual de alunos pretos e pardos, entre 18 e 24 anos, cursando ensino superior subiu de 50,5%, em 2016, para 55,6%, em 2018. A pesquisa aponta políticas voltadas para a democratização do acesso ao ensino superior – entre elas, as cotas – como responsáveis pela alta do percentual. 

O índice, no entanto, ainda está abaixo do percentual de 78,8% registrado por jovens brancos da mesma faixa etária – o que mostra que ainda há um caminho a se percorrer na busca pela igualdade nos indicadores educacionais. 

Em relação aos povos indígenas, a fala do presidente beira o escárnio. Isso porque, ao mesmo tempo que enaltece os índios como uma das partes formadoras da identidade nacional, Bolsonaro dá andamento a uma política de ataques sistemáticos aos povos indígenas. 

Essa política de ataques despertou a reação de grupos que atuam em defesa dos direitos humanos. No final do ano passado, o presidente foi denunciado ao Tribunal Penal Internacional em uma ação que pede que ele seja julgado por genocídio de povos indígenas. A ação foi movida em conjunto pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e a Comissão Arns. 

Por fim, o fato de o presidente exaltar o golpe de 1964 em seu pronunciamento mostra que o Brasil ainda não acertou as contas com seu passado ditatorial. Enquanto outros países vizinhos, como Argentina e Chile, formaram comissões da verdade que julgaram militares envolvidos em crimes durante suas respectivas ditaduras, no Brasil a iniciativa não obteve resultado semelhante. Fundada em 2011, a comissão brasileira concluiu em 2014 seu relatório final, que foi entregue a então presidente Dilma Rousseff. Porém, um levantamento feito ano passado pelo site jornalístico independente Aos Fatos denunciou que, desde a entrega do relatório, apenas cinco das 29 recomendações feitas pela comissão foram efetivamente cumpridas. Em outras palavras, o passado ditatorial do Brasil permanece uma ferida aberta na história do país. 

Passados quase dois séculos desde a independência, o Brasil ainda vive um processo de construção de sua real identidade. Sabemos que não somos a fantasia apresentada por Bolsonaro. Por outro lado, também sabemos que Brasil desejamos ser: um país que luta pela reparação das injustiças cometidas ao longo de sua história e que permanece vigilante para impedir que novas injustiças sejam cometidas.