O ano é 2023 e eu não acredito que ainda temos (e teremos) muito o que falar sobre isso
Por: Regina Fiore, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
As pessoas estão falando bastante sobre censura e liberdade de expressão. Uma colunista famosa disse, em um vídeo do Youtube, que quem defende a liberdade de expressão tem o amargo compromisso de defender o direito do outro de ofender, como se a liberdade de expressão fosse sagrada em uma sociedade que se guia pela democracia. Será que é? Para conferir, vamos dar uma olhada nela, a única, a sua, a minha, a nossa Constituição Federal.
“Artigo 13: Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideais de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”.
Um minuto de apreciação desse belíssimo parágrafo. Mais uma vez, a Constituição: “A liberdade de expressão não é um direito absoluto. O artigo 13.2 da Convenção, que proíbe a censura prévia, também prevê a possibilidade de exigir responsabilidades pelo exercício abusivo deste direito, inclusive para assegurar o respeito aos direitos e a reputação das demais pessoas”. Tem muito mais sobre o assunto no site do STF.
A liberdade de expressão não é um direito absoluto. A mesma lei que proíbe censura prévia confirma que o exercício abusivo desse direito pode ser penalizado. Aliás, no Estado Democrático de Direito não existem direitos absolutos, com duas exceções que fazem parte do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas: ninguém, em hipótese alguma, pode ser torturado ou ser feito de escravo.
Apenas estas DUAS EXCEÇÕES são consideradas direitos fundamentais absolutos, já que nem o direito à vida entra nessa categoria (na Constituição do Brasil, por exemplo, a legítima defesa está prevista, assim como a ortotanásia. Em alguns outros países, a lei prevê também a prática da eutanásia). Ou seja, a liberdade de expressão não é um dogma, não está acima de tudo e todos.
Quer dizer que a liberdade de expressão pode ser limitada? Sim. A liberdade de expressão pode ser limitada em casos muito específicos, por decisão judicial, quando infringe limites que: 1) são expressamente estabelecidos pela lei; 2) devem ser concebidos para proteger os direitos ou a reputação de terceiros; e 3) são necessários em uma sociedade democrática. Não inventei nada, isso está estabelecido desde 1988 pela nossa Constituição Federal. E deixa um portal imenso aberto para o buraco negro que são as interpretações das leis: relativização, jurisprudência, precedentes legais, juiz ou juíza que assume o caso, entre outras.
Mais uma vez, vem comigo: a liberdade de expressão NÃO É um direito fundamental absoluto, ok? Vamos manter esse combinado a partir de agora. Combinado não sai caro para ninguém, desde 1988, nesse caso.
“Não entrem nessa conversa com a emoção, entrem com a razão”
Fábio Porchat, humorista e apresentador que dispensa apresentações, pede mais razão e menos emoção para a conversa, em um post indignado sobre a decisão da Justiça de SP de tirar de circulação o especial de comédia “Perturbador” do Léo Lins, considerado comediante brasileiro. Vale um flashback para que quem não acompanha o tal Léo Lins não precise se submeter a isso: a notícia mais antiga que encontrei foi de 2019, onde já havia inúmeras reclamações sobre as besteiras que esse cara fala em seus shows.
Ele fazia parte do programa “The Noite”, apresentado pelo Danilo Gentili, (confesso não ter me aprofundado sobre sua função no programa, já que até hoje eu não entendi a função do programa por si só) e foi demitido em 2022 por um comentário em tom de graça sobre a condição de pessoas que nascem com hidrocefalia. Já sofreu repúdio por ser gordofóbico, capacitista e até antissemita. Gente boa, né? O tipo de cara que dá vontade de levantar a voz e defender em público.
No dia 16 de maio, Porchat publicou em seu Twitter, ao compartilhar a notícia sobre a determinação da Justiça de SP de tirar o show “Perturbador” do ar: “Isso aqui é uma vergonha! Inaceitável!”. Pareceu premonição. No dia 21 seguinte, o jogador Vini Jr. levou cartão vermelho em campo por uma confusão que teve com o time adversário: ele levou um mata-leão e devolveu com um empurrão com o braço.
Antes da expulsão, a torcida do Valencia estava chamando continuamente Vini Jr. de monco, macaco em espanhol. O jogo já estava tenso, foi paralisado, mas o árbitro resolveu continuar, apesar de a FIFA estabelecer que ataques racistas devem ser respondidos com a suspensão do jogo. Na verdade, o dia 21 foi uma repetição de outros nove casos registrados de racismo que aconteceram envolvendo torcidas de times da La Liga – Vini Jr. expôs boa parte dos ataques em um compilado de vídeos postado em suas redes. Isso aqui SIM é uma vergonha. Inaceitável! Frase certa na hora errada, Fábio Porchat.
Uma música do Emicida, ex-companheiro de Porchat em um programa no GNT, descreve bem a situação em que o humorista se enfiou: “Por mais que você corra, irmão/ Pra sua guerra vão nem se lixar/ Esse é o X da questão/ Já viu eles chorar pela cor do orixá?”. Não, não choram pela cor dos orixás, mas esperneiam pela liberdade de expressão de um cara que diz em seus shows que “negro reclama que não tem emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim”.
Porchat defende a permanência do show de Léo Lins no Youtube e critica as outras punições estabelecidas pela justiça. Defende que Léo Lins pode fazer piada com o que quiser, desde que não seja incitação à violência ou ao ódio. Assim como ele, muitos outros brasileiros precisam ler mais sobre o que é e quais as consequências do racismo recreativo, expressão cunhada pelo jurista Adilson Moreira, autor e professor de direitos humanos da Universidade Mackenzie.
Rir ou fazer graça da violência sofrida por pessoas que tiveram seus antepassados sequestrados e escravizados de forma cruel, desumana e assassina é um jeito que o pacto da branquitude encontrou para desprezar as pessoas negras sem se sentirem mal por isso e reafirmar sua superioridade. Tem um jeito bem fácil de começar a aprender a distinguir: piada racista não é piada, é racismo. Defender racista entra nas garantias constitucionais da liberdade de expressão – mas será que é mesmo necessário?
O processo que ocasionou a decisão da Justiça de SP foi conduzido totalmente dentro da legalidade. Léo Lins foi racista. Racismo é crime hediondo no Brasil. O Ministério Público denunciou o episódio de racismo à justiça. A justiça aceitou a denúncia, apurou os fatos e decidiu que o conteúdo racista deveria ser tirado do ar e o autor dele deveria prestar contas para não cometer o mesmo crime repetidamente. É o processo legal judicial de toda e qualquer ação, desde o século XIII.
Porchat disse em outro post que está conversando sobre o assunto, “conversas que têm gerado muito aprendizado”. Bonita mesmo foi a resposta que Vini Jr. deu ao presidente da La Liga, Javier Tebas Medrano, que tentou colocar a responsabilidade dos ataques racistas em cima do próprio jogador.
Vini escreveu: “Não sou seu amigo para conversar sobre racismo. Quero ações e punições. Hashtag não me comove”. Coragem e talento o atleta tem de sobra, mas na verdade é horrível ter que exercer essa coragem para falar de episódios tão odiosos, que atrapalham a visibilidade do talento, da alegria em campo, das taças que já foram e ainda serão levantadas.
O dever absoluto: a culpa nunca é da vítima
Se não há direito fundamental absoluto, acredito que exista uma espécie de dever absoluto, ou premissa absoluta, quando falamos de pessoas que sofrem qualquer tipo de violência, especialmente aquelas ligadas a racismo, homofobia e machismo. “A vítima que a sofre nunca poderá ser responsabilizada pelo crime”, divulgou o Real Madrid, time do Vini Jr., em comunicado oficial divulgado após os episódios do dia 21 de maio.
Na mesma data da divulgação, eu ouvi a atriz e comediante Dani Calabresa dando uma entrevista divertidíssima. As apresentadoras do vídeocast (Quem pode, pod) tiveram o cuidado e a sensibilidade de deixar o assunto do caso Marcius Melhem para o final, já que Calabresa tem muita história bacana para contar fora dos episódios de assédio sexual e moral, que sofreu enquanto trabalhava com o ex-diretor da Globo.
Acompanhar o caso das mulheres que denunciaram Marcius Melhem por assédio moral e sexual causa uma angústia parecida com a despertada pela indignação do Porchat a favor do Léo Lins. A angústia de quem pensa: estamos em 2023 e Léo Lins ainda tem público, aumento de seguidores E defensores?
Estamos em 2023 e as pessoas ainda duvidam da palavra das vítimas? Estamos em 2023 e um homem ainda consegue justificar assédio sexual pelos comportamentos da vítima? Estamos em 2023 e as pessoas ainda compram o estereótipo da mulher ambiciosa, sedutora, rejeitada e amargurada, que elabora uma conspiração para se vingar do pobre homem, inocente e bem-humorado? Estamos em 2023 e as pessoas ainda assistem ao Pânico (na Jovem Pan)?
A Constituição Brasileira celebra 35 anos em 2023. São 35 anos sendo pouco lida e muito mal interpretada. Não existe direito absoluto para ninguém, nem mesmo para as vítimas de crimes odiosos e totalmente anticivilização como são o racismo e o assédio sexual. São 35 anos e a Constituição envelheceu muito mal: ainda há gente que defenda a liberdade de ofensa criminosa, ainda precisamos (e devemos) suspender a partida de futebol para mostrar que somos absolutamente contra crimes de ódio, ainda é preciso se defender dos ataques de abusadores que tentam transformar as vítimas nas grandes culpadas, responsáveis pelo próprio assédio.