Nem machistas, nem feministas: somos “Pobres Criaturas”
Por Regina Fiore, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Pobres Criaturas (Poor Things). Um dos filmes mais aclamados e aguardados desse ano, com 11 indicações ao Oscar e muitos elogios, tanto para o diretor Yorgos Lanthimos quanto para a atriz Emma Stone e os atores Willem Dafoe e Mark Ruffalo. O filme é baseado no livro de Alasdair Gray de mesmo nome, publicado em 1992. Quem optou pelo velho truque “vou esperar sair o filme”, para não ler a obra, teve um delay de 32 anos – e fez jus à espera.
A discussão, que tem permeado muitos meios de comunicação e perfis nas redes socias, é sobre o quão feminista ou misógino é o filme. Meu diagnóstico: não é nem uma coisa, nem outra. Vários detalhes acabam passando despercebidos para quem já vai assistir ao filme com a pre-concepção de que será ou não uma obra feminista. E tais detalhes são importantíssimos para a narrativa. A partir de agora, contém MUITOS spoilers.
Começando pelos cenários: são belíssimos e, acima de tudo, são oníricos (referente aos sonhos). Foram inspirados nos artistas surrealistas, futuristas e expressionistas, com referências às obras de Salvador Dalí e René Magritte (aquele do homem com cara de maçã). São paisagens coloridas, que lembram muito um sonho que mistura realidade, fantasia, passado e futuro. É até difícil dizer em que exatamente época o filme acontece.
Pelas referências e comportamentos, imagino que a história se passa no início do século XX, uma Belle Époque com toque vitoriano. Mas nenhuma dessas informações sobre a época interfere na apreciação do filme. Os figurinos também são muito bonitos, se destacam pelas mangas bufantes e cores vibrantes, alguns deles até caricatos. O filme começa em preto e branco e logo se abre para um colorido intenso, o que ajuda a entender toda a trajetória da personagem principal.
Vamos à ela: Bella Baxter, interpretada por Emma Stone, é uma criação do cientista Godwin Baxter – um Dr. Frankenstein com sentimentos. Além de ser um homem voltado para a racionalidade, Godwin é um inventor: tudo em nome da ciência. Encontrou o que viria a ser Bella quando uma jovem se suicida, atirando-se de uma ponte. A mulher está morta, mas estava grávida e o bebê sobreviveu. Godwin, então, resolve experimentar: coloca o cérebro do bebê recém-nascido no corpo da mulher adulta. Nasce Bella Baxter.
Bella considera Godwin a figura paterna que qualquer bebê enxergaria – e o chama de God. Primeiro detalhe interessante: God, apelido de Godwin, também é a palavra em inglês para Deus. Deus criou Bella – e, ao longo dos diálogos, essa confusão proposital torna algumas cenas bem engraçadas (em inglês). Bella é uma criança pequena em desenvolvimento, no corpo de uma mulher adulta. Assim como uma criança, ainda não age de acordo com as normas sociais – obedece seu corpo, apenas.
Quando come algo que não gosta, cospe na hora. Quando é contrariada, testa o limite da figura paterna. Quando quer fazer algo, apenas faz, mesmo sendo repreendida depois. Godwin contrata um assistente para ajudá-lo no projeto “Bella Baxter”, com a intenção de registrar tudo o que ela faz. Um dos diálogos mais importantes acontece entre os dois cientistas.
O assistente diz que imaginou que Godwin mantivesse uma relação conjugal com Bella, inclusive relações sexuais. Godwin diz que “seu sentimento paterno ultrapassou seus desejos sexuais” e ainda explica que é eunuco – um dos experimentos que seu pai realizou nele, ainda criança. Yorgos Lanthimos fez a lição de casa e leu Freud: em seu texto Totem e Tabu, o criador da psicanálise usa o termo “castração” para se referir também ao momento em que se estabelece que a relação entre pai e filha é incestuosa e, portanto, proibida.
Godwin foi, literalmente, castrado pelo seu pai – um inventor impiedoso, que criava e matava em nome da sua criação. Seria o pai de Godwin uma referência a Deus? O que veio antes de God (Deus) amoroso e preocupado do Novo Testamento se não um Pai (Deus) colérico e rígido, do Antigo Testamento? Psicanálise, ciência e religião dão início à Bella – e a todas as criaturas.
Bella começa sua experimentação no mundo por meio da descoberta do próprio corpo, assim como uma criança pequena. Por estar num corpo adulto, já desenvolveu suas características sexuais e, ao se masturbar com uma fruta, encontra o que ela chama de “felicidade”, o gozo. Ela fica tão extasiada com a descoberta que quer mostrar para a governanta da casa como se faz. Aqui, a personagem escolhida pelo diretor para que Bella contasse a “novidade” foi uma mulher, trazendo a questão do tabu do prazer feminino.
Ao longo de sua jornada, Bella encara suas experiências sexuais como verdadeiros experimentos. Esse é o olhar de uma criança para o mundo: experimentação e descobertas, enquanto vai sendo apresentada às normas sociais. O trabalho corporal feito com Emma Stone é impressionante: é um bebê que está aprendendo a se movimentar, andar, controlar seus movimentos.
Como Bella encara as experimentações sexuais está do lado oposto a como as pessoas que interagem com ela enxergam sua sexualidade. Uma criança curiosa, no corpo de uma mulher, que pode ser facilmente persuadida, é a vítima perfeita para os abusos dos homens. Lembrando que, mentalmente, Bella não é capaz de consentir um ato sexual – apesar de gostar (muito) da sensação de prazer que o sexo traz.
Dessa forma, Duncan (interpretado por Mark Ruffalo), um advogado cafajeste e sedutor, não encontra dificuldades para convencer Bella de que ela precisa sair da mansão onde vive com Godwin para desbravar o mundo. Duncan se aproveita disso para ter relações sexuais constantes com Bella. Em uma das cenas pós-sexo, ele afirma que os homens precisam de um tempo para conseguir repetir a dose e Bella constata: homens são inferiores às mulheres – que podem transar sem depender da disposição de um órgão.
Duncan se apaixona por Bella, por ela ser diferente de qualquer outra mulher com quem ele já esteve. A ambivalência do personagem é quase caricata: um homem, que se mostra machista desde o início e que se aproveita da infantilidade de Bella, se torna obcecado por ela exatamente porque falta nela aquilo que seus próprios machismos (e de muitos outros homens) impuseram às mulheres, por meio das normas sociais.
A obsessão de Duncan, que ele chama de amor, é o aprisionamento da figura feminina, ao mesmo tempo em que há o abuso de seu estado mental infantil. As mulheres na nossa sociedade são infantilizadas o tempo todo. Seja na estética, começando pela busca por mulheres sem pelo, pela aparência cada vez mais jovem, pela pornografia que cresce cada vez mais em categorias “teen”, seja no tratamento – sempre as incapazes, as que precisam de ajuda, de comandos, de ensinamentos, de algum homem para nos mostrar o que é certo. A nossa sociedade busca a “boa menina” e fica obcecada pelas mulheres que, de alguma forma, destoam desse papel.
Duncan abandona Bella nas ruas de Paris, depois de roubar seu dinheiro. Ela se depara, então, com uma casa de prostituição e, em seu raciocínio ainda de criança, diz: “Gosto de sexo e preciso de dinheiro, achei meu lugar”. A própria cafetina chama esse momento de “uma mulher buscando sua liberdade” – mas ela é dona do prostíbulo, é claro que ela não iria recusar a mão de obra que chegou de tão bom grado. É a sua empresa dizendo nas redes sociais que “somos uma família”.
Logo, a realidade da contratação dos sonhos aparece: a cafetina mostra que a prostituição ali é uma necessidade, é uma forma de não passar fome. Bella sugere, na frente das colegas e de um cliente, que o ideal seria que as prostitutas escolhessem com quem vão fazer sexo, para que elas não sintam repulsa pelos clientes. A cafetina dispara: “Os homens gostam de saber que você não está gostando”.
Em uma das cenas, um pai leva os dois filhos, um deles ainda criança e o outro um pré-adolescente, para “aprender sobre sexo” com a Bella. O pai faz sexo com ela enquanto os meninos anotam todos os passos – mais uma vez, a literalidade de como os meninos são apresentados ao sexo e como eles o assimilam: algo prático, sem relação com sentimentos ou emoções, e pornográfico (vendo o próprio pai com uma prostituta).
Outra cena interessante é o momento em que Duncan, vingando-se de Bella por não querê-lo mais, leva o viúvo da mulher suicida, cujo corpo Bella ocupa, para vê-la. O homem, um militar de alta patente, “pega de volta” sua esposa e, na casa, Bella ouve uma conversa entre ele e um médico, dizendo que seu clitóris será cortado para “livrá-la de desejos pecaminosos”. Mais uma vez, a sexualidade da mulher sendo decepada – na literalidade. Felizmente, Bella escapa de mais uma armadilha social para se tornar uma “boa menina”.
Deixei muito momentos marcantes de lado, que já foram bastante comentados: a dança de Bella em um salão, acompanhada por um Duncan ciumento e constrangido; seu contato com a realidade de pessoas que estão em situação de miséria, na Alexandria; a primeira vez que ela experimenta um Pastel de Belém; sua experiência em um navio; e seu despertar para a leitura e a filosofia, que mostra amadurecimento mental.
A conclusão, depois de ler bastante sobre o filme e assisti-lo, é: “Pobres Criaturas” é um filme divertido, bonito, irônico e com ótimas atuações. Não é feminista – é sobre a descoberta e o desenvolvimento de uma criança que, por estar em um corpo de uma mulher adulta, é atravessada pela opressão que as mulheres sofrem. Acima de tudo, é um filme fantástico, no sentido de estar inserido no mundo da fantasia, ainda que tenha muitas referências baseadas na realidade. É como um sonho – no sentido freudiano da palavra.