Por: Marta Dueñas, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

O corpo feminino não tem paz, nem mesmo quando é o corpo masculino que se desnuda durante uma partida de vôlei numa competição esportiva entre universidades.

A cena que repercutiu nas redes sociais no último final de semana dá conta de um grupo de estudantes de medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa) abaixando as calças e tocando suas partes íntimas em volta da quadra de vôlei durante o jogo do time feminino. O crime ocorreu durante os jogos do Intermed, tradicional torneio esportivo entre universidades. Depois da “volta olímpica” com as calças abaixadas, os estudantes fizeram o que foi chamado de “masturbaço” em frente às jogadoras e à plateia. O nome disso é Crime de Importunação Sexual e, com raras exceções, nem mesmo a imprensa deu as credenciais corretas aos atos praticados.

A cena é violenta. A cena é cretina. A cena é misógina. A cena é machista. Nem todos os homens, mas sempre um homem. Dessa vez, foram 20 que praticaram crime que se enquadra no artigo 215 do Código Penal cuja pena prevista é de 1 a 5 anos de reclusão. É disso que se trata. É isso que se deseja: expulsão da universidade e detenção antes que ainda venham dizer que é tradição de calouros ou coisa que o valha.

Na noite de segunda-feira (18), a universidade comunicou a expulsão dos alunos identificados. O crime ocorreu em maio deste ano, mas ganhou notoriedade somente no último final de semana. Alguns podem imaginar que pouco importa a data, importante que foi dada notoriedade ao caso. A mim importa muito, afinal, como uma cena dessa dimensão de violência e misoginia pode ter ficado em sigilo por semanas ou meses? A Universidade, até o fechamento deste texto, não deu uma nota, nenhuma manifestação. É inimaginável que o mesmo ocorresse no caso de corpos femininos. Se fossem 20 mulheres levantado a blusa e mostrando os seios ou, ainda, abaixando as calcinhas em um ginásio esportivo, a cena ganharia notoriedade no mesmo dia. O nu feminino não passa despercebido. O nu feminino é o medo e o deleite do patriarcado, até mesmo quando se trata do jornalismo, das redes sociais e das leis.

O patriarcado, que alguns chamam de força invisível, é tão concreto e acachapante no Brasil, que se manifesta até mesmo assim, com 20 “ticos” de fora, afrontando e invadindo os espaços femininos. O patriarcado, apesar de um sistema (de controle e dominação dos corpos femininos pelos homens), se manifesta, se concretiza pela violência, pela injustiça. Ele não é só método, ele é processo com entregas e produtos. Uma cultura de invasão, controle, dominação e violência.

A cena, eu diria, é um drops de histórias piores e mais perversas como as de violência em ambiente de saúde e atenção ao corpo de crianças e mulheres. O fato de serem estudantes de medicina traz dois cruzamentos de imensa relevância. Primeiro a considerar que a Universidade, no mundo, reproduz as relações de poder da sociedade machista e patriarcal. E o ambiente universitário é um dos lugares onde ocorre mais assédio, perdendo para as bases militares e as bases familiares. Depois, contabilizar com muita tristeza que o ambiente da saúde também é ameaçador para as mulheres. Vocês se lembram do caso aterrorizante do obstetra que violentou uma mulher em pleno trabalho de parto? Um caso de tamanha significância em que mulher e criança são violadas juntas, que é o exemplo mais emblemático das significâncias do patriarcado, centrado no homem, nas suas necessidades e desejos. Todo o resto é objeto.

Prova disso é que, a cada dois dias, uma mulher denuncia um caso de abuso ou assédio e uma unidade de saúde no Brasil. Esse dado é da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, contabilizado por denúncias feitas por telefone ou nos serviços de atenção às vítimas, que sabemos, é subnotificado. O número real deve ser muito maior. O estudo aponta ainda que 95% dos abusadores são homens e 75% deles, profissionais dos locais de atendimento.

O crime contra as jogadoras é também contra mim! Contra todas as mulheres que brincam, que jogam, que estudam, que trabalham, que brilham e vivem. Livres ou não. É um crime contra todas as mulheres que se constituem como sujeito de suas vitórias.

Homens desconhecem o preço que se paga para ganhar sendo mulher. E desconhecem, também, o preço de cada derrota. Poderíamos revidar promovendo um ato que seria, para além de um crime de assédio, um master class do prazer feminino que grande parte dos homens desconhece. Mas eu prefiro a construção de uma nova via em que o respeito e a dignidade sejam centrais. E que cada um se desnude onde lhe for mais conveniente ou prazeroso. Estou farta do machismo cotidiano que se expande em palavras, gestos e atos que fazem recuar o corpo feminino como quem aniquila sua existência. Porque o pior do patriarcado não é apenas a dominação sobre as mulheres senão o medo das mulheres que dominam sua própria história.