Por Sara Café, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

 

Com a chegada dos alemães ao Rio Grande do Sul, há mais de 200 anos, a história costuma ser contada como um desbravamento de terras “vazias” por imigrantes que valorizavam o trabalho livre. No entanto, o livro-reportagem Invisíveis: O lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã, dos jornalistas Gilson Camargo e Dominga Menezes, traz uma perspectiva diferente. A obra questiona a narrativa oficial, que frequentemente exalta os imigrantes europeus, e coloca em evidência o protagonismo de indígenas e negros nesse contexto histórico.

O livro explora as histórias, culturas, tradições e a vida das comunidades que já habitavam o Vale do Sinos antes da chegada dos primeiros imigrantes alemães. Também destaca a presença milenar dos povos indígenas que circulavam pelo território que hoje é o Rio Grande do Sul e o impacto da escravização de negros na região, especialmente em São Leopoldo.

Com base em estudos históricos recentes, crônicas da época e entrevistas com especialistas e ativistas, os autores revelam os conflitos territoriais entre os imigrantes e os povos indígenas, além de expor que alguns alemães também participaram da escravização de negros. A obra investiga como a história oficial apagou essas populações e reflete sobre o racismo, a violência, a exploração e a perseguição enfrentadas por essas minorias.

Produzido com recursos do Pró-cultura RS FAC – Fundo de Apoio à Cultura do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, o livro conquistou o terceiro lugar na categoria Grande Reportagem (livro) do 41º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo 2024. A cerimônia de premiação será realizada em 10 de dezembro, em Porto Alegre.

Em entrevista ao portal Mulheres Jornalistas, Camargo e Menezes discutem o apagamento histórico dessas populações e destacam avanços recentes graças a políticas públicas. Um dos marcos dessa transformação é o monumento Diversidade 200 anos, inaugurado em São Leopoldo no dia 25 de julho, como parte das celebrações do bicentenário da cidade e da chegada dos primeiros 39 imigrantes alemães ao Vale do Sinos. Confira a entrevista.

 

 

1) Qual a motivação para escrever este livro e trazer à tona as histórias de indígenas e negros na imigração alemã?

A motivação é de natureza jornalística, ou seja, delineamos a pauta e aprofundamos a investigação para poder escrever sobre um tema que por muito tempo foi vetado pela história oficial. Quisemos tornar pública a invisibilização étnico-racial que veio junto com a imigração alemã e procuramos fazer isso com uma linguagem não excludente, um texto direto, como numa grande reportagem que combina pesquisa bibliográfica e documental, investigação jornalística e entrevistas. 

2) Como foi o processo de pesquisa histórica para resgatar a presença e o protagonismo desses grupos no Vale do Sinos? Houve desafios em acessar essas informações?

Havia uma preocupação em relação à escassez de material de pesquisa que fosse descolado da germanidade, o que acabou não se confirmando. Existe farta documentação histórica e pesquisas mais aprofundadas a partir dos anos 2000, bem como novos estudos e publicações recentes de historiadores e outros pesquisadores, inclusive farto material nas teses de pós-graduação.

Fomos atrás do resultado desse material, nas universidades da região, nos museus e arquivos públicos e que está à disposição de quem quiser pesquisar, mas que precisa ser decifrado. Na sua maioria, são registros e documentos que estão confinados no ambiente acadêmico, que oferecem apenas pistas ou estão em formatos que exigem familiaridade com os métodos de pesquisas, ou seja, não são informações acessíveis ao público em geral.

Na 38ª Feira do Livro de São Leopoldo, em 20 de setembro 2024 com os autores Gilson Camargo e Dominga Menezes Foto: Caren Souza/ Carta Editora

No processo de produção de Invisíveis compilamos esse material com a ajuda de pesquisadores, e para dar luz a uma história mal contada, trouxemos para o livro-reportagem contribuições e exemplos de obras que são fundamentais para entender melhor como se deu essa invisibilização. Um exemplo é o livro Registros da presença negra no Arquivo Histórico do RS (Oikos, 2023), o qual compila a documentação avulsa do Fundo Polícia do AHRS de 1826 a 1888, com organização de Ananda Fernandes, Paulo Moreira, Jonas Vargas e José Carlos Cardozo.  

 

3) Quais são as principais consequências do apagamento histórico das minorias raciais na construção da narrativa oficial sobre a imigração alemã?

Não há reparação possível para o apagamento histórico das minorias raciais e, portanto, o estrago e as consequências continuam muito presentes. O livro aborda um passado que deixou marcas que ainda estão muito presentes, de exclusão, violência, preconceito, discriminação. Vivemos em uma cidade cuja história e fundação são contadas oficialmente a partir da chegada do imigrante, 24 de julho de 1824, o que decreta a não existência de indígenas, negros e portugueses que viviam nesse território. No caso dos “selvagens”, há pelo menos 12 mil anos. O legado desse apagamento, que é o mesmo legado da escravidão e do massacre dos povos indígenas a partir de 1.500, são as desigualdades e injustiça social, racismo, violência e discriminação.  

 

4) O livro trata do racismo, da violência e da exploração vivida por essas minorias. Essas questões ainda ressoam nas comunidades descendentes de indígenas, negros e imigrantes europeus na região ainda?

Chegada dos imigrantes alemães a São Leopoldo
Tela de Ernst Zeuner (1895-1967)
Acervo do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo

 

Ressoam com a certeza de que não há reparação possível para a invisibilização desses povos. O reconhecimento das novas gerações à ancestralidade, no entanto, ganhou força nas comunidades negra e indígena nas últimas décadas, apesar da tradição forjada na repetição de mitos ainda  muito presentes na memória de descendentes dos imigrantes e até mesmo de quem veio morar no município de São Leopoldo e foi convencido da versão contada ao longo desses 200 anos.

 

5) O que mais surpreendeu durante a investigação sobre a presença de negros escravizados em São Leopoldo e de indígenas na região do Rio Grande do Sul? 

 

Mais do que uma surpresa foi a constatação de que a exaltação ao colonizador não é prerrogativa de São Leopoldo; acabou replicada com suas variantes em todas as regiões de colonização alemã. Assim como a exclusão e a violência contra os povos originários e a escravidão estão presentes na história da formação do estado. Esses pesquisadores aos quais recorremos para escrever o Invisíveis foram aos arquivos públicos para comprovar que havia povos indígenas nesta região à época da chegada dos imigrantes. São Leopoldo e região eram habitadas por portugueses e negros escravizados trazidos de diversas regiões da África. Não se trata de menosprezar a narrativa dos primeiros historiadores, até porque o que eles retrataram, muitas vezes de forma empírica, foi fundamental para a continuidade das pesquisas pelas novas gerações. 

6) Como o livro tem sido recebido pelo público e pelas comunidades locais? Houve reações de resistência ou de acolhimento ao questionamento da narrativa oficial?

 

Indígenas em São José do Hortênsio, retratados como invasores em painel sobre a Colônia de São Leopoldo
Acervo do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo/ Reprodução Carta Editora

A recepção ao livro tem sido muito positiva nas comunidades de um modo geral, a começar pelo título da obra que vai direto ao ponto, deixando para o leitor tirar as suas próprias conclusões. Não vimos reações negativas ao conteúdo, mas tínhamos claro que o livro poderia ser alvo da negação diante da força das narrativas impostas por mais de dois séculos. 

Há também aqueles que se sentem representados. Nos lançamentos e rodas de conversas sobre a obra, muitos soltam a voz para dizer que o livro traz uma carga muito forte de ação antirracista, de reconhecimento a outras culturas e religiões e estimula o sentimento de pertencimento. Constatar que as pessoas leem e se identificam com a narrativa e validam o livro é muito gratificante, não por questões de vaidade, mas porque isso confere sentido a esse trabalho. Invisíveis também despertou o interesse dos meios de comunicação. 

Desde o lançamento, em 16 de abril, foi e continua sendo destaque nos principais jornais e sites de notícias do estado, com matérias e entrevistas nos jornais Zero Hora, Correio do Povo, Jornal do Comércio, Brasil de Fato, Extra Classe, Gazeta do Sul, TVERS, entre outros; e também virou pauta dos jornais The Guardian e Deutsche Welle

 

7) Qual a importância de iniciativas como o Pró-cultura RS FAC no financiamento de projetos que buscam recontar histórias a partir de uma perspectiva mais inclusiva?

As políticas públicas de incentivo direto, como o Pró-Cultura RS (FAC), as novas leis Paulo Gustavo (LPG) e Aldyr Blanc (Pnab), ou indireto, de captação, como a Lei Rouanet viabilizam a realização de projetos culturais e produção de conhecimento que do contrário nem sairiam do papel. Não menos importante que a profissionalização e a valorização da cadeia produtiva da arte, o financiamento público é uma importante ferramenta para assegurar a acessibilidade e a democratização do acesso público aos espetáculos, bens e equipamentos culturais, porque têm como contrapartida ações afirmativas, de acessibilidade e inclusivas muito pontuais por parte do promotor cultural.

Escravos e a liteira que pertencia a Maria Elisa Julia de Lima, esposa de Visconde de São Leopoldo

8) Quais lições o leitor pode tirar de Invisíveis para repensar a forma como enxergamos a história do Brasil e a luta por equidade racial no presente?

Creio que a contribuição do livro é mais no sentido de convidar ao aprofundamento do debate sobre direitos humanos, igualdade racial, justiça social, verdade histórica. Reafirma que todos os povos têm história e todos têm direito à verdade sobre a sua própria história. A obra oferece pistas consistentes para quem quiser dar continuidade à pesquisa sobre imigração e os grupos raciais envolvidos nesse processo, o que já temos conhecimento que está acontecendo, pois o livro vem sendo utilizado em sala de aula.