Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes

Como a imprensa não regulada serve a propósitos pouco humanos num projeto de capitalismo preconceituoso e segregador expondo violência e violentando

A imprensa foi alvo de censura durante a Ditadura Militar no anos 60 não somente para calar e silenciar quem se opunha ao golpe e toda sua reverberação violenta e corrupta. O estrangulamento da comunicação social também tinha como propósito servir a interesses de mercado e apoiadores do Golpe. Censura é censura, regramento é outra coisa. Quando, no início dos anos 2000, o então presidente Lula tentou aprofundar as discussões sobre a regulação da imprensa, meios de comunicação, lideres de direita fizeram um levante fazendo crer que se tratava de um projeto de censura e controle dos veículos de comunicação e que tal feito poderia ferir a liberdade de imprensa. Mais uma vez, a estratégia de acortinar uma informação com fumaça de seu próprio fogo, ora bolas, quem é que em nome da liberdade anda numa cruzada contra jornais e jornalistas?

Pois bem, de lá para cá, ainda que com 14 anos de governo de esquerda, todos os projetos e iniciativas de construção de marcos regulatórios para a comunicação foram engavetados e todos nós somos responsáveis por isso.  

A falta de regulação da comunicação só garante a concentração dos meios de comunicação, tornando as narrativas unilaterias. A minha e a sua realidade são noticiadas e contadas pela ótica das grandes corporações e companhias. A fome é tratada pela narrativa do agronegócio e não da sociedade, o emprego tem como voz a indústria, só para situar alguns temas. É sempre o ponto de vista dos empresários (dos grandes, não você micro empresário, você é o que corre atrás do olhar do grande como um gatinho que se vê um leão no espelho). 

O tal livre mercado parece que não tem dado conta de criar uma atmosfera cidadã e democrática como prometeram para livrar  a sociedade da “ditadura da esquerda”. E a internet, que poderia ser o ambiente livre e competitivo, não mudou este contexto e, nos últimos anos, agravou a concentração do poder e monopólio das multinacionais nesse ambiente. 

O Brasil tem regulação de mídia, mas os decretos que regem as comunicação aniversariam da década de 30, ainda do topo do telégrafo. Ao longo das décadas, diversas leis foram criadas como a Lei de Rádios Comunitárias, a Lei do Cabo, a criação do Conselho de Comunicação Social etc. Mas elas foram criadas a reviria de um projeto amplo. São leis criadas de maneira fragmentada e desordenadas, um alento, mas longe de serem uma estratégia que garanta o verdadeiro serviço da comunicação: que é social.  

Ainda que tenhamos leis que regulam conteúdo, garantindo punição para crimes de preconceito de raça ou cor, ou a lei de tela que define cotas para produções nacionais no audiovisual, a regulação da publicidade, inclusive, com a proibição da publicidade infantil (que mudou substancialmente a programação das televisões no Brasil). Isso, contudo, não nos coloca no rol das nações que têm uma regulação da mídia nos moldes democráticos.  E agora, no atual governo, avançamos para trás! Somente no governo Bolsonaro, 73% das autorizações da TV Digital vão para canais cristãos. E qual o risco disso? Bem, vamos falar de discussão ampliada sobre estupro, aborto, gênero, direitos?? 

Não tenho dúvida que a criminalização de uma criança de 11 anos que deveria ter seu aborto garantido por lei; a exposição da atriz que foi estuprada e, não podendo abortar, entregou o bebê para adoção são resultados da falta de regulação dos meios. Não só temos mais veículos que representam um pensamento antidemocrático e servem ao mercado e não a população, como temos a violência sendo amparada por uma suposta liberdade construída na falta de regras e de atenção a leis.  

A imprensa já está acuada com um presidente que fere profissionais, os ataca verbalmente em lives ou entrevistas, mas não vamos deixar de pensar num poder a serviço da sociedade discutindo monopólios, oligopólios, classificação indicativa para proteger as crianças de conteúdos abusivos. Isso não é censura. É regra! É urgente que possamos moralizar o tema de conflito de interesse entre parlamentares e concessionárias de emissoras de rádio e/ou televisão. Onde já se viu políticos com poder de legislar que tenham concessão pública para montar meios de comunicação. É imoral e tem que ser ilegal! A regulação da comunicação trata disso e é, também por isso, que anda tão engavetada. 

Também temos que coibir programas de TV e rádio que, de maneira violenta, impõem visões de  mundo racista e misógeno. Aquele pastor que esbraveja contra as mulheres com grande audiência. Aquele vereador que é também delegado e invade um hospital atacando médicos em serviço. Ah, que saudade da época que falavam que a novela alienava. As novelas são produto de cultura local e, francamente, nos últimos tempos, fazem um belo serviço em trazer para a mesa do jantar temas como como casamento homoafetivo, adoção, direitos civis, corrupção, diferenças de classes sociais, meio ambiente, mineração, violência no campo.  Na briga pela audiência e com a subida dos canais cristãos às preferencias populares, assistimos, além da espetacularização dos absurdos, o aumento da violação de direitos humanos em rede nacional. 

Faz tempo que temos assistidos às atrocidades que a “imprensa livre” tem cometido. O jornalismo sensacionalista não surgiu agora. Remonto 2008, o Caso Eloá Cristina, 15 anos, sequestrada pelo ex-namorado. Um crime espetacularizado pela imprensa ávida por audiência. Na época, a jornalista Sonia Abrão, RedeTV! (por óbvio), entrevistou o sequestrador ao vivo, bloqueando a linha com o negociador e intervindo diretamente no curso do crime. Psicólogos e especialistas em negociações são unânimes e categóricos ao afirmar que o episódio (a intervenção da emissora por meio da jornalista) mexeu diretamente (e negativamente) no caso que resultou na morte de Eloá. É a isso que eles chamam liberdade de imprensa?  

A TV Record também tem suas façanhas (e não sou poucas). Programas policialescos que ultrapassam os limites do jornalismo, militam e incentivam o ódio e a violência. Não raros apresentadores clamam pela prisão, morte ou uma dita justiça contra pessoas, suspeitas de delitos que, muitas vezes, são filmados, ao vivo, durante ação policial com ampla cobertura e, muitas vezes, interferência dos supostos jornalistas. A referida emissora, por conta de um episódio do programa Cidade Alerta, foi condenada em maço deste ano a uma indenização de R$ 1 milhão por incitação a violência cometida em 2015. Naquela oportunidade, o apresentador Marcelo Rezende, já falecido, narrou uma perseguição policial e defendeu que um policial disparasse contra os suspeitos. O fato ocorreu e foi transmitido ao vivo. 

O sensacionalismo, o grotesco e muito do que não é jornalismo tem tido espaço crescente. São programas que vocalizam um discurso de olho por olho, dente por dente. Uma equivocada sensação de justiça que, na verdade, tem nuances de ódio e violência.

Na busca por essa audiência descabida, temos aí, neste período em que mulheres amarguram violências de todos os tipo no Brasil, um jornalista explorando e explicitando uma violência sofrida por uma jovem atriz que, além de ter que se posicionar sobre um estupro ocorrido, precisou esclarecer o processo de doação do bebê fruto desta violência. 

Quando a imprensa viola, ela não é comunicação social. Está a serviço do discurso que se pretende hegemônico mas é sectário, violento, moralista e retrógrado. Falemos então, de regulação de comunicação, pois ela é a garantia da defesa de direitos humanos, e não uma censura. A regulação dos meios é mais para evitar vozes violentas que comparam “morte com entregas do Oscar” como proferiu aquele que cunhou o termo CPF cancelado do que para calar a sua voz. A sua voz poderá ser calada por um tiro que eles chamam justiça quando tratam por bandido qualquer um que não seja do time deles.