Por: Haline Farias, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Com uma vida repleta de obstáculos, discriminação e exclusão, as pessoas com deficiências encontram auxílio e a chance de transformar essa realidade através do trabalho da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul

Com um papel jurídico e social importantíssimo, a Defensoria Pública foi instituída pela Constituição de 1988 como o modelo nacional de assistência jurídica integral e gratuita. O papel da instituição é de orientar juridicamente, promover e defender os direitos humanos, garantindo o acesso à justiça às pessoas em situação de vulnerabilidade, aos grupos sociais hipossuficientes ou sub-representados judicialmente. 

O acesso a direitos e à justiça, assim como ter informação sobre os mesmos, é um privilégio que muitos brasileiros não possuem. A Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2022 aponta que aproximadamente 25% da população brasileira está potencialmente à margem do sistema de Justiça e impedida de reivindicar seus próprios direitos por intermédio da Defensoria Pública. São mais de 50 mil brasileiros vivendo sem acesso à assistência jurídica gratuita. Institucionalizar a assistência jurídica através de órgãos, como a Defensoria Pública, faz com que aumente o acesso à justiça de modo eficiente, conseguindo alcançar pessoas que, muitas vezes, sequer sabem quais são os seus direitos.

Dentre as populações vulneráveis para as quais a Defensoria Pública trabalha a favor estão as Pessoas com Deficiências (PcDs), que, em sua maioria, vivenciam diariamente violações de seus direitos. A instituição atua de diversas maneiras com o objetivo de efetivar os direitos e resguardar a dignidade desses indivíduos. Letícia Mello, psicóloga, PcD, analista na área de psicologia na Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE-RS) desde 2018 e membro da Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão (CPAI) da DPE-RS, conta que a DPE-RS, assim como as outras DPEs, atua tanto na defesa individual como coletiva dos direitos das pessoas com deficiência. 

Letícia destaca que quase 25% da população brasileira possui ao menos uma deficiência, o que faz ainda mais importante e urgente discutir os direitos dessa população | Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal

 Uma realidade marcada por negação de direitos, discriminação e exclusão

De acordo com o Art. 2°, na Lei Brasileira de Inclusão 13.146/2015, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

“Pessoa com Deficiência” é o termo correto para se referir a esta condição. Para diferenciar quando a situação aconteceu, classificam-se as deficiências em dois tipos: deficiência “congênita”, quando a pessoa nasceu com a deficiência; e deficiência “adquirida” se a pessoa passou a ter a deficiência ao longo da vida, por exemplo, após um acidente. Além disso, há diversos tipos de deficiências, categorizadas em: Deficiência física; Deficiência auditiva; Deficiência visual; Deficiência mental e Deficiência múltipla.

A sociedade possui comportamentos e conceitos estigmatizados e excludentes em relação às PcDs: ruas, locais públicos e privados sem acessibilidade; escolas sem tecnologia, estrutura e/ou pessoas qualificadas; rótulos pejorativos atribuídos; exclusão do mercado de trabalho; etc. Tudo isso, obviamente, prejudica o dia a dia, o futuro e a saúde mental dessas pessoas. Além disso, a falta de acesso e conhecimento dos direitos, e/ou a negação dos mesmo, tornam a realidade das PcDs ainda mais difícil.

Jessica Mauer, 25 anos, nasceu com manchas brancas na íris do olho, e já em seus primeiros dias de vida sua mãe descobriu que ela não enxergava, tinha um problema congênito na visão. “Fiz sete cirurgias nos olhos, fiquei até os quatro anos sem enxergar nada, a partir daí eu comecei a enxergar um pouco pelo olho esquerdo, somente 5% […] Com o tempo, acho que eu forçava demais, minha visão do olho diminuiu bruscamente”. Atualmente, Jessica só consegue enxergar algumas cores, “só quando é dia, enxergo como luzes, mas nada nitidamente.” Ela comenta que, diante de uma vida com tantos obstáculos e preconceitos por ser deficiente visual, ficou deslumbrada quando começou a conhecer seus direitos, saber que tem direitos a tantas coisas trouxe um pouco mais de segurança e estabilidade à sua vida.

Jessica trabalhava como massoterapeuta, mas atualmente está encostada pelo auxílio doença do INSS | Imagem: Reprodução/Acervo pessoal

Divulgado no dia 21 de setembro deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o relatório Pessoas com Deficiência e as Desigualdades Sociais no Brasil, realizado a partir de dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, estudou as condições de vida das PcDs no país, a fim de mostrar as desigualdades sociais observadas nas seguintes dimensões: trabalho, educação, saúde, participação e gestão, rendimento e moradia. 

São 17,2 milhões de pessoas com deficiência de 2 anos ou mais de idade, segundo a pesquisa, destacando que as deficiências se concentram em pessoas mais idosas, das quais 24,8% entre aquelas com 60 anos ou mais de idade tinham alguma deficiência. O relatório quantificou e apontou a vivência dessas pessoas, que é repleta de barreiras e desigualdades sociais enfrentadas em diferentes áreas, como no acesso ao mercado de trabalho. No Brasil, a taxa de participação dessa população no mercado de trabalho em 2019 era de 28,3%, enquanto a de pessoas sem deficiências era 66,3%, ou seja, a cada dez PcDs que buscavam um emprego, sete estavam fora do mercado. A taxa de formalização (emprego formal com carteira assinada) segue o mesmo ritmo da anterior: 50,9% para pessoas sem deficiência, contra somente 34,3% de pessoas com deficiência em atividade nesse modelo. 

Também foi observada que a taxa de desocupação foi maior entre as PcDs, sendo de 10,3%, enquanto entre as pessoas sem deficiência foi de 9,0%; o salário médio é mais um fator desigual: o das pessoas com deficiência foi de R$ 1.639 mensais, apenas dois terços da renda média das pessoas sem deficiência, que é de R$ 2.619.

Os entraves e as transgressões de direitos existentes na educação das PcDs, de acordo com o relatório do IBGE, “representam dificuldades para o bem-estar e a vida plena, bem como para capacidades futuras, como inserção laboral, participação política, entre outras”. As barreiras são muitas, incluindo a falta de acessibilidade, estrutura, profissionais especializados etc. A PNS 2019 apresentou que, referente à frequência escolar bruta de adolescentes de 15 a 17 anos, apenas 72,4% daqueles com deficiência estavam na escola, contra 89,3% entre os sem deficiência. 

Jessica conta que enfrentou muitas dificuldades na escola e sua educação foi bastante prejudicada, pois não conhecia seus direitos e nem teve acesso a escolas apropriadas para recebê-la, com recursos de acessibilidade. “Eu ficava a ver navios nas escolas onde estudei […] muitas vezes, passei de ano só por passar, não por eu ter aprendido de fato, ser uma aluna na média ou nota dez, mas só porque eles precisavam me passar pra frente”.

Por meio do seu livro, consultorias e redes sociais, Priscilla dissemina o conhecimento sobre a legislação para pessoas com deficiência, responsáveis e profissionais que atuem com PcDs | Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal

As PcDs têm seus direitos garantidos na Constituição Federal, nas Constituições Estaduais e em Leis Orgânicas Municipais ou Distrital (DF); Tratados e Convenções Internacionais; Leis Federais, Estaduais, Distritais(DF) e Municipais; Decretos Federais, Estaduais, Distritais (DF) e Municipais e em outros diplomas normativos. Priscilla Machado, Pós-Doutora em Direito e autora do livro Direitos e benefícios para Pessoas com Deficiência, explica que, para garantir o cumprimento da lei e proteger os direitos das PcDs, há a atuação de vários órgãos, como o Judiciário e o Ministério Público.

Em 2015, foi sancionada a Lei nº 13.146/2015, mais conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência ou Lei Brasileira de Inclusão (LBI). “Essa lei busca assegurar e promover, em igualdade de condições, o exercício dos direitos e liberdades fundamentais por pessoas com deficiência, visando a sua inclusão social e a cidadania. A Lei Brasileira de Inclusão propõe uma mudança no conceito de deficiência, que anteriormente era considerada como uma condição biológica da pessoa e, desde então, passa a ser entendida como o resultado da interação das barreiras impostas pelo meio com as limitações de natureza física, mental, intelectual e sensorial da pessoa. Ou seja, a deficiência deixa de ser centralizada no sujeito e passa a ocorrer no meio no qual a pessoa está inserida”, explica Letícia.

Para além do Estado, Letícia complementa que é um dever também da sociedade e da família “assegurar à pessoa com deficiência a efetivação dos direitos decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico”.

Aline Guimarães, Dirigente do Núcleo da Pessoa com Deficiência na DPE-RS (NUDEPED), explica que a principal dificuldade enfrentada pelas PcDs ainda é a barreira atitudinal, que são “atitudes ou comportamentos que impedem ou prejudicam a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas”. Ela afirma que é necessária e urgente uma mudança desses comportamentos, pois somente transpondo essa barreira será possível romper as demais. “Tudo começa através da mudança de atitudes e do respeito às pessoas com deficiência.”

Roberta Sales | Imagem: reprodução/Acervo pessoal

Roberta Sales, Assistente Social da Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência (Apabb) do Rio de Janeiro, conselheira e presidente do Conselho Estadual de Políticas de Integração da Pessoa com Deficiência (CEPDE) do Rio de Janeiro, conta que o tempo todo em sua rotina de trabalho há casos de PcDs que tiveram seus direitos negados ou não conhecem seus direitos, ela também expõe um pouco da realidade que presencia no estado.

“Hoje, no estado do Rio de Janeiro, não tem um plano estadual de políticas para PcDs, não temos um fundo da pessoa com deficiência ativo, isso impacta na forma como que a parte de sensibilização poderia ocorrer. Atualmente, nós temos ações pontuais, planejadas e executadas sem a participação direta da sociedade civil […] Temos problemas seríssimos ligados à acessibilidade e mobilidade no estado, desde o transporte modal, até a questão das vias, a parte arquitetônica das cidades […]”. 

A Apabb atua como parceira da Defensoria Pública, como instituição da sociedade civil e também de perfil socioassistencial, e se integra na rede socioassistencial, na rede de conselho de direitos a nível municipal, estadual e nacional. “A gente acaba estreitando esse caminho, essa parceria através do conselho de direitos, mas sobretudo na orientação direta da população. São feitos eventos em comum e há parceria em várias possibilidades […] Já fizemos uma ação de arrecadação de tampinha para doação de cadeira de rodas junto ao Núcleo de Pessoa com Deficiência da Defensoria Pública do Rio de Janeiro […] Atuamos em parceria a Defensoria não só em relação aos processos, dúvidas específicas, como no controle social e outras campanhas que sejam pertinentes”, comenta Roberta.  

Instrumento de transformação social às PcDs

Para Priscilla Machado, a Defensoria Pública é de “suma importância para garantir e preservar os direitos das pessoas com deficiência sempre que houver ameaça ou restrição a direito previsto em lei, dando o amparo jurídico para isso”. O trabalho dessa instituição, instrumento e expressão da nossa democracia em prol das PcDs em muito contribui para a diminuição gradativa das desigualdades sociais e dos obstáculos que impossibilitam a inclusão social dessas pessoas. 

”A DPE-RS atua na defesa individual e coletiva dos direitos das pessoas com deficiência”, conta a Defensora Pública Cinara Imagem: Reprodução/Acervo pessoal

A atuação do órgão se dá de diversas formas, como expõe Cinara Fratton, Defensora Pública, membro do Núcleo da Pessoa com Deficiência na DPE-RS e associada à Associação das Defensoras e dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (ADPERGS): “[…] através de atendimentos às pessoas com deficiência; orientação jurídica e promoção de ações, coletivas e individuais, judiciais e extrajudiciais, visando à promoção dos direitos dessa população […]”. Além disso, ela acrescenta que eles buscam propor a criação de políticas públicas que assegurem a participação plena das PcDs na sociedade e elaboram materiais educativos que orientem acerca de temas referentes à deficiência.

Em 2019, foi criada a Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão (CPAI) na DPE-RS. Letícia conta que a comissão tem por finalidade prestar apoio consultivo a todas as ações da instituição que tenham por objetivo a promoção da acessibilidade e a inclusão de pessoas com deficiência.

As pessoas com deficiências não buscam o atendimento da defensoria apenas em contextos relacionados à saúde e assistência, Cinara explica que é preciso desmistificar e romper com essa ideia. “Esse é um entendimento bastante capacitista e que limita as necessidades das pessoas com deficiência a apenas duas esferas. Em verdade, essas pessoas possuem questões jurídicas comuns, como família, crime, divórcio, alimentos, dissolução de união estável, consumidor. Assim, uma pessoa com deficiência deve buscar a defensoria sempre que entender que seus direitos foram violados, quando necessitar de orientações jurídicas ou de defesa em processos judiciais, por exemplo.”

 

O Núcleo da Pessoa com Deficiência, o qual a Aline é dirigente, foi criado a fim de dar maior visibilidade à pauta | Imagem: Reprodução/Acervo pessoal

Todos os anos, a DPE-RS elabora e divulga, por meio das suas mídias sociais, uma grande campanha sobre a temática da deficiência. Aline expõe que a ideia é levar conhecimento sobre aspectos relacionados à deficiência, ampliar a discussão e promover a educação em direitos. “As campanhas são elaboradas através da Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão (CPAI) e da Assessoria de Comunicação e todos os anos se percebe o alcance e o espaço que o tema vem conquistando!”. A DPE-RS procura, assim, dar visibilidade aos conceitos de acessibilidade e inclusão, incentivando a conscientização dos gaúchos.

Em agosto deste ano, ocorreu em Porto Alegre a XXVIII Semana Estadual da Pessoa com Deficiência, com o tema “A união que fortalece o protagonismo”, onde foram realizadas diversas atividades paradesportivas e culturais, seminários, palestras e exposições, com destaque ao 181º Fórum Permanente da Política Estadual para Pessoas com Deficiência, realizado pela FADERS (Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pc e PcAH no RS)  Acessibilidade e Inclusão.

Questionada sobre os problemas mais comuns enfrentados por uma PcD em relação a direitos e justiça, Letícia acredita que o mais comum são as barreiras que as pessoas com deficiência se deparam em seu cotidiano, não só para acessar seus direitos e a justiça, mas também para circular pelos diferentes espaços. “É bastante comum, infelizmente, encontrar prédios públicos sem condições de acesso a pessoas com deficiência, sistemas de informação sem adequações de acessibilidade e ônibus sem elevadores para cadeiras de rodas […]”.

Pessoas com deficiência precisam ter seus direitos, dignidade, assim como suas particularidades, respeitados e garantidos, e viver em uma sociedade onde possam participar, serem incluídas, terem autonomia e oportunidades como as pessoas sem deficiências. Em busca da efetivação de tudo isso, a Defensoria pública tem um papel importantíssimo, e leva o direito à uma vida plenamente inclusiva e acessível, direito à igualdade e à não discriminação, e direito à dignidade humana às PcDs, sendo um agente de transformação social valioso e imprescindível.