Por Regina Fiore, Jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista

A mídia transmitiu ao vivo o julgamento público que envolve o ex-casal de celebridades. Não importa o resultado, saímos todas perdendo depois da decisão dos jurados

As chamadas nos grandes veículos, com exceção de dois ou três, da quarta-feira passada (01/06), se resumiam a: “Johnny Depp ganha disputa judicial contra Amber Heard”. Um título simbólico para o desfecho de alguém já havia sido inocentado no tribunal público desde que Amber Heard, há seis anos, veio a público contar sobre a relação abusiva e violenta que viveu com o ator. 

Em um artigo publicado no jornal americano Washington Post, a modelo e atriz, então recém-separada de Johnny Depp (com quem teve um relacionamento de 5 anos), denuncia que sofreu violência doméstica e foi estuprada durante o casamento. “Neither disappointed, nor surprised” foi a minha reação ao saber que um dos atores que mais gosta de ostentar a pose de bad boy de Hollywood seria capaz de abusar da esposa, 22 anos mais nova. Johnny Depp tem histórico de abuso de álcool, abuso de drogas, relacionamentos instáveis com outras mulheres e milhões em sua conta para garantir um lugar no topo da cadeia alimentar das celebridades americanas.

Na época, um vídeo dele arremessando coisas e batendo porta de armários enquanto gritava foi vazado e ficou nítido que sim, Johnny Depp ficava violento quando estava sob os efeitos do álcool, segundo a própria Amber relatou. Depp perdeu alguns papéis e acabou entrando na lista hostil de celebridades masculinas que abusam de seu poder para praticar violência contra mulheres. O ator está muito bem acompanhado, ao lado de outros homens que continuam tendo milhões de fãs e seus milhões na conta, ganhando prêmios e circulando normalmente em Hollywood, mesmo depois de serem expostos. 

Crimes contra mulheres são os únicos em que a palavra da vítima já começa a ser questionada desde o primeiro momento. Violência doméstica é o único crime no qual a vítima é tratada como criminosa e o abusador ganha o benefício da dúvida. A primeira rodada do jogo já perdemos aí, estamos perdendo há muitos anos. Mas as apostas continuam quando uma mulher decide contar seu caso de violência e expor seu abusador. O problema é que a banca sempre leva tudo no final. E, neste caso, estamos falando de uma banca riquíssima, com uma legião de fãs e a ideia de que está acima de todos por já ter sido considerado um dos melhores atores de sua geração.

Depp dobrou as apostas no garantido: se uma mulher te acusar de abuso, acuse-a de mentirosa e louca. Grite, indignado: “I’d never!”, pose para alguns posts cheios de “crocodiles’ tears”, agradecendo o apoio dos fãs que “realmente te conhecem” e não hesite em colocar todas as suas fichas em um processo de difamação. A crueldade está aí: uma mulher sofre violência física, emocional e psicológica e depois será abusada novamente na corte, no julgamento pelo público, pela mídia, pelos tribunais das redes sociais.

Manobras judiciais e manipulação da opinião pública

O julgamento Amber X Depp, no qual ambos processaram um ao outro por difamação (Amber acrescentou no processo violência doméstica), foi televisionado como foram tantos outros. Mas também virou trend no TikTok com mais de 14 milhões de visualizações em vídeos zombando da atriz quando ela contou sobre o momento que constatou, surpresa, que Johnny Depp a havia agredido. Depp é representado por um gatinho vestido de pirata que dá uma patadinha em outra gata e ela diz: “Johnny, you hit me”, como se ser agredida pelo parceiro não causasse exatamente essa reação na vítima, externalizada ou não. “Não acredito que ele está me batendo” é perfeitamente normal. 

A expressão “quem bate não lembra, mas quem apanha nunca esquece” é a realidade de milhares, se não de milhões de mulheres ao redor do mundo e nenhuma de nós está a salvo, nem da violência física nem da violência simbólica que vamos precisar enfrentar depois, caso decidamos denunciar. Todas as mulheres perdem quando Amber é ridicularizada e desacreditada sobre as agressões, mesmo tendo vídeo, mensagens de textos, comportamentos violentos e especialistas juristas depondo a favor da vítima. Além da misoginia que existe por trás do pensamento de que uma mulher se sujeitaria a tudo isso para “tirar dinheiro” do ex-marido. 

A verdade é que as manchetes mentem: Amber não perdeu o caso. Ambos foram condenados por difamação: Depp deve pagar uma indenização de US$ 2 milhões à ex-mulher e Heard uma indenização de US$ 15 milhões ao ex-marido. Mas ele escapou da condenação de violência doméstica, depois de três dias de deliberação do júri. A indenização não ficou mais cara apenas para Amber, mas para todas as vítimas de violência doméstica que pensarem em denunciar e expor seu agressor, principalmente se for um homem poderoso, cheio de fãs e recursos.

Quando vamos entender que, na sociedade em que vivemos, a violência masculina é naturalizada? Os homens usam da violência para conseguir o que querem e convencem a si próprios que não fizeram por mal, mas as descontroladas, loucas e mentirosas somos nós. A violência doméstica não começa quando o agressor espanca a vítima. Começa quando ele soca um armário, segura a vítima, grita para silenciá-la. Homens violentos não são a exceção, são a regra. Principalmente quando são poderosos. 

É fácil enxergar quem era o elo mais fraco desta corrente: Amber é 22 anos mais nova, é julgada pela sua aparência e imediatamente colocada como aproveitadora. Johnny Depp começou um relacionamento com Amber não por amá-la, mas por exergá-la como um troféu, depois da separação de Vanessa Paradis, a quem chamou de “vagabunda e vigarista francesa” em e-mail para o cantor Elton John. Será que manipular uma mulher de 40 anos é mais difícil do que manipular uma mulher de 26, Johnny? Com certeza é, posso dizer com conhecimento de causa (uma história para uma próxima coluna). 

Além do show de misoginia que qualquer feminista enxerga diante do julgamento, é muito importante salientar que todo e qualquer caso que vai a júri popular tem meandros e manobras que vão muito além da verdade: provas podem ser descartadas, testemunhas podem ser desacreditadas. Não é sobre quem detém a verdade, mas sobre quem conta a história mais convincente, mais popular. A justiça, nesta empreitada de permanecer cega, pode cometer erros que vão além do que é exposto ali, diante do júri. 

Além disso, o resultado do caso de Heard e Depp foi um abalo sísmico que afeta progressos fundamentais que tivemos desde a campanha do “Me Too”. A questão que pode ficar é: abalou porque Amber é uma mentirosa que se aproveitou da relação ou porque Depp é um abusador inocentado? Heard estava de fato mentindo? Johnny foi inocentado injustamente? Meu veredito final é: prefiro me enganar por ter acreditado em uma mulher mentirosa do que defender um abusador que foi considerado inocente. Afinal, julgar como inocente um abusador, que agrediu e estuprou sua companheira, corrobora com o que já sabemos, mas nos recusamos a ver (talvez por medo inconsciente de que sejamos as próximas): a justiça é falha quando o assunto é violência contra a mulher. “The winner takes it all”.