Esporte, religião e empreendedorismo: as faces do vegetarianismo
Por: Natália Bosco, jornalista
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Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Presente desde a pré-história, a alimentação baseada no consumo de plantas tem voltado a ganhar destaque
Cada vez mais conhecida, a alimentação predominantemente vegetariana foi algo característico na nossa evolução. Segundo a Associação Vegetariana Portuguesa (AVP), o nosso antepassado Australopithecus Anamensis alimentava-se essencialmente de frutas, folhas e sementes, vivendo em relativa harmonia, e o consumo de carne provavelmente resumia-se à captura de animais mais pequenos, que poderia facilmente apanhar para se alimentar.
“Em boa verdade, parece que o consumo de carne surgiu bastante tarde na evolução humana. Para se ter uma ideia, Colin Spencer, um historiador prolífico que fez um retrato da história do vegetarianismo em várias obras, descreve como, comprimindo a nossa evolução e usando como escala a vida de uma pessoa de 70 anos, o consumo de carne começa apenas nos últimos nove dias”, escreveu a AVP.
Antes, sobrevivência. Agora, estilo de vida. Na verdade, muitos são os motivos que podem levar uma pessoa na contemporaneidade a escolher uma alimentação baseada no vegetarianismo. Cultura, valores morais, saúde e compaixão pelos animais são algumas delas.
No Brasil, o número de pessoas que se declaram vegetarianas vem crescendo. Em 2018, a Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ibope) conduziu uma pesquisa sobre o tema e concluiu que cerca de 30 milhões de brasileiros são vegetarianos. O número apresenta um aumento de 75% em relação à pesquisa realizada em 2012, quando esse número era de 8%.
Nos EUA, cerca de 16 milhões de pessoas se declararam veganos em uma pesquisa do Instituto Harris Interactive. Já no Reino Unido, cerca de 1,68 milhão de pessoas se declararam veganos para o Ipsos, um instituto de pesquisa social.
Segunda sem Carne: a campanha mundial do Paul McCartney
“A campanha ‘Segunda Sem Carne’ se propõe a conscientizar as pessoas sobre os impactos que o uso de produtos de origem animal para alimentação têm sobre os animais, a sociedade, a saúde humana e o planeta, convidando-as a descobrir novos sabores ao substituir a proteína animal pela vegetal pelo menos uma vez por semana”, explica a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).
A SVB explica que a campanha existe em mais de 40 países, como nos Estados Unidos e no Reino Unido (onde é encabeçada pelo ex-Beatle Paul McCartney) e apoiada por inúmeros líderes internacionais. Ela foi lançada no Brasil em outubro de 2009 e hoje conta com o apoio de governos, personalidades e empresas.
Por aqui, a ação já ganhou espaço em escolas estaduais e restaurantes comunitários. A implementação da Alimentação Escolar Vegetariana está presente desde 2011 em escolas municipais de São Paulo, onde os alunos da rede pública do município de São Paulo têm acesso a refeições 100% livres de produtos animais, trazendo grande impacto positivo.
Em 2015, a Secretaria do Desenvolvimento Social lançou a campanha “Segunda Sem Carne” dentro do programa de restaurantes populares Bom Prato, do governo do estado de São Paulo. Na época, a primeira unidade beneficiada foi a de Santo Amaro, que atendia uma média de 2,5 mil pessoas por dia, e passou a substituir a carne por proteína vegetal toda segunda-feira. As outras 48 unidades do “Bom Prato” também entraram na ação ao longo de 2016.
A SVB destaca alguns feitos da Segunda Sem Carne no Brasil, que é considerada a maior do mundo. Segundo a sociedade, no ano de 2018 foram 67 milhões de refeições vegetarianas oferecidas. No primeiro semestre de 2019 foram mais de 42 milhões de refeições.
A sociedade também lista os impactos positivos da campanha. A SVB estimou que a cada 24 g de ovos, 311 g de carnes e 430 mL de leite ou derivados não consumidos, evita-se 14 kg de CO2 emitidos na atmosfera; 100 km rodados em um carro comum; desperdício de 3.400 litros de água (equivale a 26 banhos de 15 minutos).
Vegetarianismo e esporte
A fisiculturista Evelyn Santos tem uma alimentação vegetariana há sete anos. A atleta optou pela dieta à base de plantas após ver um vídeo sobre o consumo massivo de aves nas festas de final de ano. “Comecei a pesquisar sobre toda cadeia de produção e senti que aquilo não estava alinhado aos meus valores como mulher, cristã, como um ser humano! Aquilo me pegou de jeito e, após ver aquele vídeo, eu não consegui comer mais carne de aves nem de boi. Três dias depois eu já não estava consumindo nenhum derivado de animal porque eu não via sentido em parar com a carne e não com o resto, afinal a cadeia de produção de todos eles se resumem em crueldade animal. Naquela época, eu não sabia que existia um nome, eu sabia que estava me tornando vegetariana estrita, a causa era pelos animais”, conta.
Evelyn é atleta há oito meses e foi a primeira campeã brasileira natural na categoria bikini da INBA (sigla em inglês para International Natural Bodybuilding Association), primeira campeã bikini Overall Natural (outra categoria do fisiculturismo) e vice campeã brasileira da Federação Internacional de Fisiculturismo (IFBB). A fisiculturista acredita que “os atletas veganos são a representação da capacidade que qualquer pessoa tem de unir o estilo de vida e alimentação com os esportes sem interferir nos resultados”. “A maioria das pessoas que estão no esporte hoje ainda acreditam que precisam se alimentar de derivados de animais para ter uma boa performance. Nós mostramos o contrário!”
Além disso, Evelyn ressalta o bom condicionamento físico de atletas veganos. “Desde que eu passei a acompanhar e fazer parte desse universo do fisiculturismo, percebo como os atletas veganos conseguem passar pelas preparações e treinos exaustivos de uma maneira mais saudável. Ainda que todo atleta esteja sempre ultrapassando seus limites, a alimentação à base de plantas nos ajuda a minimizar os danos, melhorando a força, humor, recuperação muscular, disposição física e qualidade do sono. Isso porque uma alimentação baseada em plantas é rica em antioxidantes, fitoquímicos, minerais e nutrientes responsáveis por todos esses fatores importantes dentro de uma preparação”, observa.
A atleta comenta sobre as dificuldades de valorização de um estilo de vida vegano em uma sociedade que ainda explora animais, mas relembra o papel dos atletas. “Nós somos agentes de mudança, ativistas (ainda que alguns não queiram se encaixar dessa forma) e somos nós que estamos apresentando ao esporte, cada um dentro da sua modalidade, que podemos e temos um nível competitivo sem comer animais.”
Empreendedorismo, religião e veganismo
Sara Souza é sócia do restaurante Apetit Natural, localizado na quadra 407 Norte de Brasília. O comércio tem cerca de cinco anos, foi idealizado pelo irmão de Sara e é gerenciado por toda a família — irmão, irmã, cunhado, pai, mãe. Sara conta que antes de terem um restaurante fixo, a família vendia sanduíches veganos em um pequeno trailer.
“Não era nem um food truck, era um trailer muito pequeno e a gente mal terminou ele e falamos: ‘vamos vender comida aqui’. Quando a gente começou a vender, não tinha ponto, foi naquela época em que estourou os food trucks. Ninguém deixava a gente ficar perto porque o nosso food truck era feinho, não tinha nada e o pessoal já tinha a ‘turminha’ fechada. Então, a gente começou sozinhos em um ponto bem escuro na 914 Norte. E foi conseguindo [vender]. Dentro de alguns meses, o pessoal já pegou o nome, então dentro da comunidade vegana a gente já ficou bastante conhecido. Foi muito difícil no começo, a gente arrastava o food truck no carro, o carro fundiu o motor, a gente precisou achar outro meio de levar o food truck. Foi fazendo sucesso, o pessoal foi gostando bastante dos sanduíches, compramos o nosso caminhão e no terceiro ano compramos o nosso restaurante.”
O Apetit Natural existe há cerca de cinco anos. Nesse tempo, Sara observou mudanças no cenário vegetariano de Brasília. “Eu percebi que aumentou a concorrência, a qualidade dos produtos melhoraram. A própria concorrência mesmo, sabe? A gente tem ótimos estabelecimentos veganos. Tudo isso melhorou. Eu vejo que tem mais opções veganas e mais produtos veganos. Eu tenho mais opção vegana tanto de estabelecimento quanto dentro do estabelecimento “, comenta.
Além disso, a empreendedora fala das dificuldades de fazer comida vegana para um público vegano e não-vegano. “A comida tem que ser saborosa. Não adianta ela ser saudável, não ter a carne e o leite, mas não agradar o paladar. Ela tem que ser saborosa, esse é o nosso diferencial: o sabor.”
Sara e a família não consomem carne há mais de 20 anos. Ela explica: “somos adventistas”. “A igreja nos ensina em relação à carne e que não é bom para o nosso corpo. É um alimento que não nos faz tão bem. A gente já tinha isso em mente e a questão dos animais também e falamos: ‘é o que a gente acredita, então vamos lá’. Na verdade, a gente preza muito em manter os animais. A Bíblia diz ‘não matarás’. Não diz ‘não matarás o ser humano’. Então, a gente entende que é qualquer bichinho. Eu não preciso daquele ser para me alimentar. É prezando pelos nossos animais e pelo nosso organismo (que não comemos carne). Se eu falar que a carne não é proteica, eu estou mentindo, ela é, mas tem outros alimentos que substituem tão bem quanto. Não é algo que hoje, no mundo em que a gente está, vai necessariamente ter que fazer parte da minha alimentação, porque hoje eu consigo substituir”, finaliza.