Por Regina Fiori, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Nem sobre os candidatos. É um texto sobre o Pânico, Dom Pedro II, Pandora, Freud e TV Globinho. Difícil quem esteja acompanhando as notícias políticas desde a pré-campanha eleitoral municipal e não tenha percebido a energia caótica que vibra durante os debates e as entrevistas, principalmente na disputa pela cadeira(da) do Palácio do Anhangabaú, na capital de São Paulo. Independente da torcida, é inegável que as interações estão tal qual o nível do pré-sal – não dá para ficar mais baixo. Entrega entretenimento todos os dias: “se cobrir com lona, vira circo; se cercar com grade, vira hospício”. 

Já tivemos, ao longo desses 36 anos de redemocratização, vários episódios de discussões, brigas, acusações e até mesmo xingamentos durante os confrontos diretos entre os candidatos – apesar de ser impossível esquecer Orestes Quércia, no centro do Roda Viva, eternizando as palavras: “Você é caluniador. É mentira. Mentiroso e caluniador. Caluniador e mentiroso”. O que aconteceu, então, em 2024?

Aconteceu o que estava escancarado desde 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito. Aconteceu o que tem acontecido no programa “Pânico”, transmitido pela Jovem Pan, há anos, sob o comando de Emílio Surita. 

“Eu não sou político, sou gestor”

João Dória iniciou o discurso do homem que “vem de fora da política”, um outsider que preencheu o pedaço dos corações dos brasileiros: “meu partido é um coração partido”. É mesmo desesperador, o tempo passa e os mesmos nomes continuam ocupando as mesmas cadeiras, parece que, desde a época de Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança e Bourbon a.k.a., Dom Pedro II. 

O Outsider que vai governar São Paulo por amor

Têm algumas pessoas da política brasileira que eu ouço o nome e penso: “mas esse homem AINDA não morreu nem foi para a Record?”. Qualquer um que chega com uma faixa verde e amarela estampada com “Eu Não Faço Parte Dessa Classe Que Só Decepciona Vocês” captura a atenção. 

A democracia brasileira anda mal das pernas (eu adoro essa expressão: está mal das pernas, mas continua andando). Xoxa, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente, a democracia nem chegou aos 40 anos e já teve: foto de presidente morto posando de “tô bem, confia”, inflação acima de 2.000% ao ano (hoje, para se ter uma ideia, ela está em 4,4% ao ano).

Teve mais: 2 presidentes que sofreram impeachment – um deles que, dizem as más línguas, sacrificava galinhas na Casa da Dinda; a outra que foi condenada, mas não perdeu seus direitos políticos, porque não cometeu crimes. Se for listar tudo, não saímos disso. Meu ponto é: para uma jovem de 36 anos, haja terapia para tantos traumas. 

Por isso, é compreensível que, quando alguém proclama “Eu não tenho nada a ver com isso”, o primeiro impulso é sair correndo em sua direção no meio chuva, se jogar nos seus braços e tascar-lhe um beijo de amor verdadeiro. Jair Bolsonaro veio na mesma onda, o problema é que ele era deputado há 30 anos e conseguiu convencer 52% dos brasileiros, em 2018, de que também fazia o perfil “outsider”

“Ele fala o que o povo pensa” – que povo?

O que me parece que realmente fez Bolsonaro ganhar a simpatia do cidadão médio, além da máquina de mentiras espalhadas pelas redes sociais e a arrogância dos partidos progressistas brasileiros, é a pura identificação: o tiozão inconveniente, bêbado e calvo do churrasco finalmente encontrou um presidente para chamar de seu. 

Em um como a pandemia, duvido que qualquer pessoa que compõe o coletivo “povo” teria sido tão cruel ao se referir às vítimas da covid-19

Bolsonaro falava o que vinha à sua cabeça. Ofendia as pessoas, fazia piada nas piores situações, achava que a solução do Brasil era metralhar, se comportava como o típico paladino da moral e dos bons costumes, ao mesmo tempo em que era investigado por envolvimento com as milícias do Rio de Janeiro. Foi abrindo a boca e “falando mesmo” que ele conquistou seu eleitorado. 

Foi por não saber quando ficar quieto que ele não foi reeleito. Como desgraça pouca é bobagem, ainda tivemos a pandemia, que foi um show de horrores do ponto de vista da comunicação do presidente com a população. Era ligar na Globonews e pensar: “mas será que não tem um assessor, um colega de partido, um funcionário do Palácio que não não chega no Bolsonaro e fala para ele, na boa, ficar de boca fechada?”. 

Até a esposa do presidente da França o cara ofendeu. Daí vieram os antivacinas, os terraplanistas, os red pills, esse pessoal que adiciona mais uns cinco transtornos mentais descritos no DSM em nossos diagnósticos psiquiátricos, só de dividirmos com eles o título de brasileiros. Não dava para acreditar que um homem que é presidente da República se comporte assim. 

O momento mais representativo foi quando Michelle Bolsonaro, então primeira-dama,  declarou em uma entrevista para o Fantástico que “dentro de casa ele não é assim” – assinou o recibo que a persona pública de Bolsonaro era inadmissível. O baiacu morre pela boca. 

Já ouviu falar do mito da Caixa de Pandora? Basicamente, Pandora foi a primeira mulher do mundo. Seu nome nome significa “a que possui todos os dons”. Pandora foi criada pelos deuses Hefesto e Atena, a pedido de Zeus, e tornou-se esposa de Epitemeu. Na celebração do romance entre Pandora e Epitemeu, os deuses lhes deram de presente uma caixa decorada, cheia de adornos – e Pandora foi expressamente proibida de abri-la. Obviamente, ela abriu a caixa – libertou todos os males, espalhando-os pelo mundo: doenças, pobreza, guerras, miséria e a morte. É como ler os efeitos colaterais de uma bula de medicação faixa preta. 

Também, que ideia é essa de presentear alguém com uma caixa que guarda todos os males do mundo?

O problema é que, uma vez que o conteúdo da Caixa de Pandora foi espalhado pelo mundo, passou a ser impossível devolvê-lo ao seu lugar e selar a caixa. E é assim que chegamos aos dias de hoje (um resumo muito rápido dos últimos 3 mil anos). Bolsonaro foi a Pandora dos últimos anos – com muito menos poesia e uma aparência bem mais prejudicada. Quando Bolsonaro foi ovacionado pelos seus eleitores por abrir mão de qualquer cordialidade ou educação, principalmente quando falava com jornalistas, ele abriu caminho para o que temos visto hoje nas eleições de São Paulo. 

O fundo do poço tem porão – e Pablo Marçal já sabia. 

Esse caos, vendido como a sinceridade de quem diz: “eu falo mesmo, doa a quem doer”, é o que sustenta o Pânico (na TV, no rádio ou no YouTube). Não é à toa que a emissora de rádio onde o programa é transmitido ficou marcada por fazer propaganda para o Bolsonaro – e quase perdeu sua concessão pública por usar mentiras e informações falsas, durante a pandemia. 

Chegamos em 2024. O centro das polêmicas, geralmente, é Pablo Marçal, que se descreve como ex-coach e que diz que está se candidatando à prefeitura de São Paulo porque já conquistou tudo o que gostaria em termos de patrimônio, carreira e vida pessoal, é um ótimo administrador e quer “servir ao povo” como prefeito (palavras dele, não minhas).

Ele diz que não tinha intenção de se candidatar até abril deste ano – o que me parece mentira, já que, desde o ano passado, ele estava investindo pesado em sua popularidade nas redes sociais para aumentar seu alcance e atrair mais as pessoas para suas palestras (seita que reúne empreendedores humilhados a preço de mensalidade de escola particular). 

Os absurdos ditos durante os encontros de Marçal com seu público já foram bem ridicularizados: dar soco em tubarão, salvar helicóptero da queda porque o piloto se desesperou, aprender a nadar em um dia para no outro já ser professor de natação, levantar idosa de uma cadeira de rodas acreditando que poderia realizar o milagre de fazê-la andar (spoiler: não realizou), e – claro – organizar um grupo de desavisados para subir o Pico dos Marins sem guia, sem equipamento apropriado, em condições temporais adversas. De acordo com a equipe de bombeiros que precisou ser acionada para resgatar o grupo, Marçal colocou a vida daquelas pessoas em risco. 

Pergunta: “Por que, Marçal?”. A verdade é que, nem se eu perguntar para o próprio Pablo Marçal, ele saberá responder. Primeiro pulo do gato, que ele mesmo entregou em mais de uma entrevista: o entrevistador ou jornalista faz a pergunta – e Marçal responde qualquer coisa, menos o que lhe foi perguntado. “Você fez a pergunta que quis, agora eu respondo o que eu quero”. 

Se eu fosse a entrevistadora, a cadeirada já tinha acontecido há tempos. Foi cada cretinice que os jornalistas foram obrigados a engolir

Marçal (estou falando com você), não é assim que funcionam as entrevistas. Você pode não estar acostumado com isso, mas, quem conduz a entrevista não é você, é o entrevistador. Não importa quantos factoides você tenha memorizado, olhos mais atentos enxergam, com clareza, que você não entrega conteúdo. Entrega apenas uma forma pasteurizada de retórica. Lembra muito aquele site, o “gerador de lero-lero”. 

Marçal adora meter a carteirada de jurista (carteirada, nesse caso, nem cabe, porque ele não passou na prova da OAB para apresentar carteira), se coloca como aquele que entende das leis e tem a ousadia de dizer para qualquer jornalista: “deixa eu te explicar uma coisa” – e começa com o blá blá blá que nada diz. “Deixa eu te explicar uma coisa”. Marçal acredita que tem alguma coisa a ensinar para um dos maiores colunistas de política e história do país, Josias de Souza. Pablo Marçal está delirando. 

Julgado em processo, a apelação é para Freud

Sigmund Freud, pai da psicanálise, desenvolveu uma teoria de que as crianças, até certa idade, podem ser consideradas “perversas-polimorfas” – ou seja, os bebês têm a capacidade de obter prazer de diversas formas, sem restrições morais ou sociais e sem limitar a sensação de prazer às partes erógenas do corpo. Depois dessa fase, os limites sociais vão se impondo e sendo assimilados pelas crianças, até o amadurecimento da sexualidade. 

Sem restrições morais ou sociais significa, por exemplo, que um bebê pode sentir prazer ao começar a chorar em plenos pulmões logo depois de a mãe ter, finalmente, conseguido acalmá-lo e colocá-lo no berço. Importante ressaltar aqui que a teoria de Freud não tem nada a ver com a sexualização ou erotização das crianças – tem a ver com o desenvolvimento, que inclui o desenvolvimento sexual. 

Freud é Pop – e Freud explica

Marçal é um “perverso-polimorfo” aos 37 anos – sente prazer em infernizar os outros. É o típico bully, o valentão da escola que precisa de atenção e é carente da presença de um adulto de verdade, que lhe coloque limites – estratégia que funciona para crianças entre 6 e 14 anos. No caso de Marçal, a estratégia é meter-lhe uma cadeirada. 

No Roda Viva ficou bem claro que Marçal vai nas entrevistas para enrolar nas respostas até o jornalista cansar e mandar um: “tá bem, vai avisando”. O entrevistador pergunta sobre orçamento, Marçal responde sobre comunismo. A jornalista pergunta sobre a condenação prescrita, o ex-coach responde sobre “a dívida externa do Lula”. A entrevistadora pergunta sobre sua reação em relação ao apoio do Bolsonaro a outro candidato, Marçal ofende os filhos do cara (não que eles não mereçam). 

Quem  está no árduo papel de entrevistá-lo até tenta: “Ok, candidato, vamos falar de uma forma prática”, “certo, candidato, mas quanto isso vai custar?”. A resposta é sempre: “Me deixa terminar? Eu estou respondendo”. Para que deixar falar, se a criatura não responde as perguntas? O fato do jornalista interrompê-lo (e tentar reelaborar a pergunta) é a prova de que Marçal não fala nada com coisa nenhuma (três negativas para enfatizar).

A estratégica retórica dele é chamar todos os candidatos de comunistas, tentar incitar o pânico dos anos 60 e se colocar como quem vai salvar São Paulo dos esquerdistas – que delírio é esse? Cada vez que ele chama Ricardo Nunes de esquerdista eu fico esperando o momento que um médico vai entrar em cena checar se a febre atingiu o patamar de provocar alucinações.

No Flow Podcast, o apresentador Igor até se irritou quando Marçal tentou explicar (de forma completamente errada) como surgiram os termos “esquerda e direita”. Entenda, candidato: citar a Grécia, falar da morfologia de alguns termos, despejar os números de artigos da Constituição não mostra inteligência, mostra que você decorou algumas coisas (algumas delas, decorou errado). Nem vou falar sobre se gabar de “escrever” 62 livros.  

Eu, como mulher, me sentiria ofendida se a frase fizesse algum sentido

Quando fala de educação, ele faz questão de explicar a diferença entre a pedagogia e andragogia (como se isso tivesse alguma relevância para explicar seus projetos) e, várias vezes, já afirmou que as pessoas precisam aprender de acordo com suas realidades – será que ele sabe que Paulo Freire, tão relacionado às escolas que, de acordo com Marçal, doutrinam os alunos, dedicou a obra de sua vida a esse assunto? 

TV Globinho e Vila Sésamo: debate eleitoral 2024

São nos debates que Pablo Marçal escancara que não tem maturidade nem para ser prefeito do GTA. Não existe decoro para um homem que, em um debate político sério, com regras assinadas por todas as partes e sorteios para que ninguém seja beneficiado ou prejudicado, já chega colocando apelido em seus adversários. 

A jornalista Denise Campos disse, depois do debate organizado pela TV Gazeta e o portal My News, que os mediadores se sentem professores do Ensino Infantil. Dificíl é que estamos falando de homens e mulheres que querem assumir a prefeitura da maior cidade da América Latina. Quando vemos Pablo Marçal chamando Ricardo Nunes de “Bananinha”, Tábata Amaral de “Ta-chata” ou “Parachoque de Comunista”, Guilherme Boulos de “Boules” ou “Comedor de Açúcar” e Luiz Datena de “Dá Pena” é como presenciar um homem de quase 40 anos arrancando as fraldas e saindo correndo pelado pelo estúdio: mesma vibe. 

Todo dia é dia. Toda hora é hora

O problema é que a presença de Pablo Marçal prejudica o todo. Daí, em vez de discutir propostas, elaborar perguntas que façam sentido e até mesmo fazer acusações e deboches pontuais, mas pertinentes, os candidatos saem do prumo – é humanamente impossível debater com Marçal e não achar convidativa a cadeira que está dando sopa por ali. É tão infantil que os debates poderiam passar na TV Globinho.

Pablo Marçal não é um grande comunicador, não é um grande mestre da retórica ou da oralidade, muito menos um empresário de sucesso que fará o mesmo pela cidade de São Paulo (até porque, governar uma cidade é bem diferente de gerir uma empresa). É um bully perverso, usuário de factoides, cujo ego deixa os espaços de debates minúsculos para o que realmente importa e tomados pela famosa frase de Roberto Jefferson em 2005: “Vossa excelência desperta em mim os instintos mais primitivos”. 

O prédio de 1 KM de altura que está entre as propostas do plano de governo de Marçal pode ser lido como o símbolo fálico máximo da sua própria carência por atenção e necessidade de reafirmar sua masculinidade. Não é grande novidade, é mais do mesmo – mas tem algo que sobra na Caixa de Pandora, depois de aberta: a esperança. Por isso, vamos de mantra do jornalista Ricardo Boechat (1952 – 2019): “Você gosta muito é de palanque. Mas eu não dou palanque para otário”.