Entenda o PL 1904, a viabilidade fetal e o uso do corpo das mulheres
Por Sara Café, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
A frase é de Simone de Beauvoir (1908-1986), escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa, e nunca fez tanto sentido.
Todos os dias o Disque 100, a central do governo federal para ocorrências de violações aos direitos humanos, recebe diversas denúncias de crimes sexuais, abusos e estupros. São 12 mil denúncias desse tipo desde 2011, de acordo com dados obtidos pelo Núcleo via Lei de Acesso à Informação.
No entanto, a Câmara dos Deputados aprovou na última quarta-feira (12) o pedido de urgência para o Projeto de Lei nº 1.904/2024, que equipara o aborto realizado acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, até mesmo nos casos em que o procedimento é permitido por lei (estupro, risco de vida à mulher e anencefalia fetal).
Tentar restringir os direitos das mulheres não é novidade para a extrema direita. Só no ano passado, foram 39 projetos contra o aborto protocolados na Câmara dos Deputados e no Senado, de um total de 42 proposições sobre o tema. A análise é resultado da nova edição do Elas no Congresso, projeto do Instituto AzMina que acompanha a movimentação legislativa federal sobre gênero.
Entenda a proposta de lei
O Projeto de Lei nº 1.904/2024 fixa em 22 semanas de gestação o prazo máximo para abortos legais. Atualmente, não há no Código Penal um prazo máximo para o aborto legal.
No Brasil, o aborto é permitido por lei em casos de estupro, risco de vida à mulher e anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto). No entanto, a realização do aborto após as 22 semanas de gestação implica a utilização de uma técnica chamada assistolia fetal, que gera grande polêmica no país.
Essa é uma técnica que utiliza medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto, antes de sua retirada do útero. Ele é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para os casos de aborto acima de 20 semanas e é considerado essencial para o cuidado adequado ao aborto.
Em abril deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução CFM nº 2.378/2024 proibindo os médicos de realizarem o procedimento. Na prática, isso impedia que a gestação resultante de estupro fosse interrompida nesse período, o que contraria a lei brasileira, que não estabelece limite máximo para o procedimento.
Para quem comete esse crime (exceto nos casos de aborto legal citados acima), o código penal prevê detenção de um a três anos para a mulher que aborta; reclusão de um a quatro anos para o médico ou outra pessoa que provoque aborto com o consentimento da gestante; e reclusão de três a 10 anos para quem provoque aborto sem o consentimento da gestante.
Caso o projeto seja aprovado pelos parlamentares, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de seis a 20 anos em todos esses casos e também no caso de gravidez resultante de estupro. A pena é a mesma prevista para o homicídio simples e pode fazer com que a vítima do estupro tenha uma pena maior que a de seu agressor. Quando a vítima é uma adulta, o crime de estupro no Brasil tem uma pena máxima de dez anos.
O que diz o Conselho Federal de Medicina (CFM)
O presidente do CFM, José Hiran Gallo, esclareceu pontos da resolução durante sessão temática organizada pelo Senado, na última segunda-feira (17). Para Gallo, há necessidade de esclarecer “informações distorcidas que, propositalmente, têm trazido confusão na análise da Resolução CFM nº 2.378/2024, que aborda tema difícil e repleto de nuances”.
Após apresentar algumas das contribuições do CFM para a qualificação da assistência e melhoria de acesso dos brasileiros a serviços, José Hiran Gallo ressaltou que as acusações de que a Resolução compromete o programa do Aborto Legal não procedem.
“Nunca, em tempo algum, a edição dessa norma teve como objetivo comprometer a oferta desse serviço em hospitais da rede pública. Trata-se de programa incorporado pelo Estado brasileiro e que deve ser disponibilizado à população, segundo critérios de acesso definidos em lei”, lembrou.
Atualmente, o Brasil conta com 92 serviços que oferecem o aborto legal para a população, distribuídos em 20 estados. Desse total, apenas 32 são referenciados pelo Ministério da Saúde. Em qualquer um dos dois cenários, a maioria desses estabelecimentos está no Sul e Sudeste.
O presidente do CFM lembrou ainda que, em 1999, dez anos após o início do programa do Aborto Legal no Brasil, o Ministério da Saúde já determinava que procedimentos desse tipo só poderiam ser realizados até a 22ª semana de gestação.
“Sobre o funcionamento da rede do Aborto Legal, que se ampliada, poderia reduzir o martírio de vítimas de estupro, os questionamentos devem ser direcionados aos gestores do SUS, cujo silêncio tem contribuído pela dupla penalização da mulher violada. Primeiro, a mulher é vítima do agressor, depois se torna refém da inoperância do Estado, por meios de seus representantes”, acrescentou Gallo.
Críticas
A maior parte das críticas provém do fato do aborto ser legalizado após 22 semanas apenas em caso de estupro, anencefalia e risco de vida da mulher. Caso o PL for aceito, seria um retrocesso no tema. O PL trás termos vagos, como “viabilidade fetal”, que pode servir de impedimento para o acesso ao aborto legal.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, o estupro no país é cometido principalmente contra meninas, onde 61,4% das vítimas têm no máximo 13 anos e mais de 80% são do sexo feminino. Ou seja, as principais afetadas pela nova lei seriam garotas menores de idade.
Ainda, é apontado possível inconstitucionalidade no projeto, desproporcionalidade na pena aplicada e a vitimização da mulher estuprada, já que mulher que aborta pode ser presa por até 20 anos, enquanto a pena para o estuprador é de até 10 anos.
A Ordem dos Advogados do Brasil aprovou, nesta segunda-feira (17), um parecer que define como “inconstitucional, inconvencional e ilegal” o projeto de lei que equipara o aborto após a 22ª segunda semana de gestação ao homicídio. O parecer afirma também que a proposta legislativa é desproporcional, falta com bom senso e tem perversas questões de misoginia, ou seja, tem teor de desprezo a mulheres, além de racismo.
De acordo com o parecer, o projeto “obriga meninas e mulheres, as principais vítimas de estupro, a duas opções: prisão pelo crime de aborto, cujo tratamento será igual ao dispensado ao crime de homicídio simples, ou gerar o filho do estuprador”.
O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), declarou que o PL jamais iria direto ao plenário do Senado. Além disso, afirmou que o PL era uma “inovação infeliz” e que não parecia ser “minimamente viável”.
Em coletiva de imprensa concedida após o encerramento da Cúpula do G7, o presidente Lula disse ser pessoalmente contra o aborto, chamou o PL de “insanidade” e apoiou a atual legislação. A primeira-dama Janja escreveu na plataforma X (antigo Twitter) que o PL é um absurdo e que “os propositores do PL parecem desconhecer as batalhas que mulheres, meninas e suas famílias enfrentam para exercer seu direito ao aborto legal e seguro no Brasil”.
O Ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida chamou o PL de “escabroso” e “vergonhosamente inconstitucional”. A Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, afirmou que “não podemos aceitar que o pouco que nós temos de garantia de direito para meninas e mulheres seja destruído nesse momento”. A deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) pronunciou-se contra, afirmando que “criança não é mãe e estuprador não é pai”.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil demonstrou apoio ao PL, afirmando que “é ilusão pensar que matar o bebê seja uma solução. O aborto também traz para a gestante grande sofrimento físico, mental e espiritual. Algumas vezes até a morte”.
Os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG) e Mário Frias (PL-SP) e a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) apoiaram a medida, declarando que o texto era problemático e veio em hora inoportuna. O ex-presidente Jair Bolsonaro relembrou o PL 5398/2013, de sua autoria, que previa o aumento de pena e castração química para pessoas condenadas por crimes sexuais.
Manifestações
“Criança não é mãe”, “Criança não é mãe. Estuprador não é pai”; “Ninguém faz aborto porque gosta. Queremos acolhimento e não prisão” diziam cartazes nos protestos contra o Projeto de Lei 1.904/2024, que equipara o aborto ao crime de homicídio.
Na noite de 13 de junho de 2024, a aprovação do regime de urgência mobilizou manifestações de rua contra o PL 1904/2024 em São Paulo e Rio de Janeiro. No sábado (15), ocorreram protestos em Brasília, Manaus, Recife, Florianópolis, Niterói, Porto Alegre, João Pessoa, Vitória, Pelotas, Belo Horizonte, Curitiba, Palmas, Natal e Ribeirão Preto.
Fortaleza também foi palco de manifestações contra o PL. Organizado por coletivos de mulheres, o protesto teve início na Praça do Ferreira às 8 horas da manhã deste sábado, 15, e seguiu caminho pelas ruas do Centro da cidade até a Praça do Carmo, quando houve a dispersão.
“Eu fui estuprada quando tinha 18 anos”. A declaração é da motorista de aplicativo Beatriz Nogueira (nome fictício), à equipe do jornal O POVO. Ela conta que a abordagem para a realização do crime aconteceu na rua da própria casa, localizada nas proximidades da avenida José Bastos. Sobre o Projeto de Lei, chamado pelos manifestantes de “PL do Estupro”, ela o considera absurdo por provocar a criminalização das mulheres. “Nós somos as vítimas”, destaca.
Presente no protesto, a servidora pública Cláudia Costa considera que a temática do PL nem deveria estar em pauta. “Eu acho revoltante estar gastando energia diante de tantos problemas sociais para uma questão que já foi discutida há muito tempo e que era para ter sido superada. Esse Congresso está apenas preocupado em desmoralizar o governo e para isso eles não medem esforços. É um absurdo atrás de absurdo e nós, mulheres, ficamos reféns. Em minutos podemos perder conquistas históricas”, avalia ela.
Também presente no evento, a coordenadora de Mulheres do Movimento Negro Unificado, Rachel Viana, considera o Projeto de Lei um retrocesso para a autonomia das mulheres. “Esse PL condena crianças e mulheres estupradas à prisão. O problema é a bancada evangélica, os conservadores, que se colocam cotidianamente contra os direitos reprodutivos do sexo feminino”, frisa.
A Auditora Fiscal da Receita Federal, Marielle Dornellas, considera o PL nefasto, que chega para torturar e retirar os poucos direitos conquistados pelas mulheres. “Esse Congresso fundamentalista e religioso deveria estar preocupado em proteger nossas crianças para que não sofram estupro. Deveria se ater à prevenção e à educação sexual das nossas meninas para que não passem por uma gravidez indesejada. Elas precisam de apoio”, finaliza ao O POVO.
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