Por Haline Farias, jornalista
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Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista

Instrumento de higienização social, a arquitetura hostil exclui, invisibiliza e dificulta a vida de pessoas em situação de rua

Você já esteve em um banco público e notou divisórias entre um assento e outro?  E já se perguntou o porquê disso? Esse é um dos exemplos de manifestação da arquitetura hostil, que talvez você já tenha visto pelas cidades, mas nunca se questionou o motivo daquilo estar ali.

“Arquitetura hostil” é um termo que foi cunhado em 2014 pelo Ben Quinn no jornal britânico The Guardian, na matéria intitulada originalmente “Anti-homeless spikes are part of a wider phenomenon of ‘hostile Architecture” (As pontas de ferro anti-desabrigados são parte de um fenômeno mais amplo conhecido como “arquitetura hostil”). O autor discute como o design de algumas cidades tem uma abordagem feita para excluir pessoas em situação de rua dos centros urbanos, impedindo que as mesmas se abriguem em locais públicos.

Também conhecida como “arquitetura de exclusão” e “arquitetura defensiva”, a arquitetura hostil trata-se de um tipo de desenho urbano feito com estruturas para fazer com que certos grupos de pessoas não se sintam bem-vindos, não possam estar e se acomodar. É uma forma de pensar e executar a construção de espaços públicos e privados de maneira agressiva, onde áreas urbanas segregam pessoas. Em geral, os indivíduos indesejados nesses espaços são, em sua maioria, pessoas em situação de rua, uma população já tão vulnerável com vivências de sofrimento e exclusão.

A professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba Patrícia Alonso caracteriza esse tipo de arquitetura “por arranjos espaciais, soluções de design ou disposição de artefatos agressivos ou segregatórios no ambiente urbano, os quais têm o efeito de afastar pessoas e inibir os contatos entre indivíduos”. Em complemento, a professora diz que dessa maneira o ambiente se torna árido, inóspito e intimidador e são gerados espaços urbanos de má qualidade que prejudicam a cidade e quem a vivencia.

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Cerca de meio milhão de brasileiros podem estar vivendo em situação de rua hoje, segundo o Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Além de já não terem moradia, ainda são submetidos à expulsão de locais públicos onde se abrigam. Imagem: Reprodução/Instagram/@tristinhas_

O arquiteto e urbanista Pedro Vada relembra que a arquitetura antigamente permitia e era feita com “certa generosidade, uma gentileza de construir, por exemplo as marquises, onde abriga pedestres, as pessoas na chuva, também é abrigo de quem não tem onde morar e vive em situação de emergência […]”. Ele comenta que uma sensação generalizada de desumanização vem sendo “instalada” nas pessoas, fazendo com que entendam as ocupações dos espaços feitos por indivíduos em situação de rua como algo incômodo.

O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) apresentou um projeto de lei (PL 488/2021), o qual o Senado aprovou e já enviou à Câmara dos Deputados, proibindo esse tipo de técnica na arquitetura do país em espaços públicos. Contarato conta que a inspiração para o PL foi o Padre Júlio Lancellotti, que já é bastante conhecido no Brasil pelo trabalho de acolhimento às pessoas em situação de rua.

De acordo com dados de uma projeção feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em março de 2020, 221.869 brasileiros viviam em situação de rua, o equivalente a cerca de 0,1% da população total do país. Pedro Vada conta que uma gama de motivos faz com que as pessoas façam da rua moradia, “tem pessoas que estão na rua, mas têm casa em outra cidade e não conseguem voltar no mesmo dia, pois o dinheiro não dá, então dorme na rua e volta pra casa final de semana. […] pessoas que estão em algum vício ou transtorno, que brigaram com família, que foram expulsas de casa […]”.

O senador Contarato afirma que essa é uma luta que precisa ser fortalecida e que é preciso “sensibilidade política e humana ao tratar os direitos humanos das pessoas em situação de rua, especialmente dentro da crise sanitária que estamos enfrentando. O caminho não é desumanizar quem precisa de acolhimento”.

Segurança ou higienização?

Quando o Estado se depara com problemas sociais e dificuldades no urbanismo, é esperado, e necessário, que ele consiga resolvê-los, atendendo todos e se atentando aos indivíduos mais vulneráveis. E não que parta para “soluções” cruéis. Tirar forçadamente essas pessoas, já tão fragilizadas, dos ambientes por considerá-las uma ameaça à segurança e inadequadas, é desumano. Além disso, é uma máscara, já que traz apenas uma ilusão de que os espaços são organizados, seguros e sem nenhum problema social.

Quem propõe e defende a arquitetura hostil a considera necessária para a segurança, prevenção de comportamento criminoso, ajudar a manter a ordem e conter comportamentos indesejados, como de skatistas e vadiagem. A sensação de segurança no Brasil, segundo Pedro Vada, já por volta dos anos 80, tem muita ligação com a limpeza social, “seja ela com pessoas que moram na rua, negras, pobres, ou mesmo as que estão em algum vício”. Para arquitetos de design defensivos, os elementos desse tipo de arquitetura têm como objetivo acabar com o crime e fazer com que os espaços públicos sejam utilizados “corretamente”, alegando que o que é hostil para uns, para outros é proteção.

Casas, praças, avenidas e toda a urbanização em geral se transformaram, ao longo do tempo, em razão da procura por segurança. Como resultado, temos os espaços públicos e privados dissociados e edificados de uma forma isolada. São muros e barreiras em toda a cidade, ao redor de condomínios e ambientes públicos, que impedem que pessoas diversas componham a vida urbana.

Esses argumentos são uma omissão do real sentido, que é excluir e prejudicar grupos específicos e indesejados, “limpando” socialmente os espaços. É uma maneira impiedosa de se fingir manter a ordem e garantir a segurança pública, o que para uns é segurança e tranquilidade, enquanto para outros é crueldade e desamparo.

Em maioria, os comportamentos e grupos que são vistos como inadequados e perturbação da segurança estão associados às pessoas em situação de rua. Patrícia comenta que, apesar de muitas vezes ser realizada em cima do argumento de “segurança e proteção pessoal ou patrimonial contra a violência urbana”, na verdade, a arquitetura de exclusão visa “afastar ou isolar grupos e sujeitos indesejáveis, como moradores de rua, mendigos e ‘favelados’”.

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A população em situação de rua, para além de todas as vulnerabilidades e dificuldades, também precisam conviver e sofrer com a marginalização, estigmas e invisibilidade. Foto: Reprodução/Canva

As estratégias utilizadas são capazes de promover e reforçar as desigualdades sociais, quase que dizendo de quem é a cidade e quem pode estar ou não nela, principalmente a vista de todos. Os espaços mais estruturados e visíveis pertencem então a quem tem poder social e/ou econômico, e os mais pobres são afastados, postos à margem. Uma urbanização hostil decreta para o pobre que mesmo que o local seja público, ele não pode ficar ali, não pertence e pode causar danos.

A arquitetura defensiva parece algo comum e inofensivo para aqueles que ela “protege”, esses “podem apreciá-la, acostumar-se a ela, ou nem sequer notá-la”, comenta Patrícia Alonso. Por outro lado, é facilmente compreendida pelos alvos: os excluídos. A professora explica que “no processo de afastamento do outro, as barreiras urbanas e arquitetônicas, o mobiliário, detalhes e sinais de exclusão” impedem comportamentos, contato humano e as interações das pessoas entre si e com os lugares, que se tornam cada vez menos acolhedores.

Há uma sensação de insegurança por parte da população em relação às pessoas em situação de rua. Muito devido, segundo Vada, há uma desumanização, “como se a pessoa não fosse uma pessoa, fosse um ente estranho que eu não consigo conviver e como não consigo conviver eu tenho que tirar, expulsar de alguma maneira do meu espaço”. A arquitetura hostil é um meio de expulsar esses grupos desumanizados, dificultando ao máximo que eles possam descansar e viver, para que assim uma parcela da população pense que exista algum tipo de organização e segurança. O arquiteto explica que não passa de uma higienização e que “[…] no caso do poder público, é varrer o problema para debaixo do tapete. Se essa pessoa não está ali embaixo do viaduto, eu não estou vendo onde ela está, então não é mais problema”, Patrícia acrescenta.

“A arquitetura hostil é uma estratégia projetual deliberada para a segregação socioespacial, que conta com o interesse e incentivo do mercado imobiliário, com a aprovação de parcela da sociedade que os consome e deseja, com a cumplicidade do Poder Público, que não só os permite como, em certos casos, os implementa, e com a participação ativa de arquitetos, urbanistas e designers que os projetam”.

Diversas cidades brasileiras vêm há anos tolerando esses obstáculos arquitetônicos e, além disso, têm os incentivado, segundo Fabiano Contarato. O senador explica que isso ocorre principalmente por conta da especulação imobiliária de determinadas regiões.

“A ideia que está por trás dessa ‘lógica’ neoliberal é a de que a remoção do público indesejado em determinada localidade resulta na valorização de seu entorno e, consequentemente, no aumento do valor de mercado dos empreendimentos que ali se localizam, gerando mais lucro a seus investidores”.

Contarato afirma que é notável que estas instalações “são medidas simplistas e cruéis”, já que “a raíz do problema está na pobreza, na marginalização e na falta de moradia digna”. Além disso, tornar as pessoas vulneráveis ainda mais invisíveis não resolve nada, “pelo contrário, aprofunda ainda mais a desigualdade urbana”, afirma o senador.

Vestígios

A arquitetura defensiva pode se apresentar de uma maneira mais sutil, como bancos irregulares, ou de maneira óbvia e mais agressiva, como pedras pontiagudas embaixo dos viadutos. E quase sempre ela passa despercebida pelas pessoas, que, em meio à movimentação urbana, não se dão conta do que acontece ao seu redor.

São diversos os materiais e elementos usados para afastar e incomodar certas pessoas dos espaços públicos. A arquiteta e urbanista Patrícia preparou duas listas, uma com algumas estratégias utilizadas nessa arquitetura e outra com alguns exemplos mais conhecidos.

Alguns tipos de Arquitetura Hostil

O design à prova de vândalos e os dispositivos “antimendigo”, que são aqueles que visam impedir a permanência de moradores de rua em certos locais públicos ou semipúblicos – geralmente os que, sem tais artifícios, seriam mais abrigados ou confortáveis para pernoite. Tais dispositivos assumem desde versões mais disfarçadas – como bancos cujo design dificulta seu uso como leitos; pisos irregulares; grades que cercam espaços vazios ou jardins; ferragens pontiagudas – até hostilizações escancaradas – esguichos de água suspensos em marquises para molhar calçadas durante a noite; jogos incômodos de luzes; superfícies tipo camas de pregos; planos inclinados ou com revestimentos assentados de forma a evitar o contato. Há até casos de latas de lixo à prova de mendigos, como um modelo com espessas chapas de aço, cadeados blindados e espetos voltados para fora, adotado por um restaurante de Los Angeles, segundo narra Mike Davis em seu livro Cidade de Quartzo: Escavando o futuro (1993);

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Diversas calçadas são cobertas de ferragens pontiagudas para impedir que pessoas se acomodem ou descansem. Foto: Reprodução/Canva
  • A arquitetura fortificada, praticamente militarizada, frequente em condomínios residenciais fechados verticalizados ou horizontais, com muros altos, guaritas encasteladas, cercas eletrificadas ou concertinas (redes espiraladas de arame farpado), câmeras de vigilância, alarmes e sensores;

 

  • Configurações urbanas em que predomina a baixa permeabilidade das fachadas e a pouca interação entre rua e lote, entre espaço público e privado, promovendo o isolamento socioespacial e a existência de ruas ermas.

Exemplares mais conhecidos

  • Em 1984, o projeto do arquiteto Frank Gehry para a Biblioteca Goldwyn em Hollywood concretizou-se em um edifício hostil e fortificado como um bunker, com o propósito de afastar os vândalos e maltrapilhos das imediações;

 

  • Em 2007, a municipalidade de São Paulo instalou, nas praças da República, da Sé e D. José Gaspar, bancos com divisórias de ferro, para limitar o espaço e obstar que desabrigados se deitassem neles. O mesmo tipo de design foi adotado em bancos públicos pela gestão municipal do Rio de Janeiro em 2009;

 

  • Em 2009, o governo do Rio de Janeiro decidiu murar 13 favelas cariocas com 14,6 km de paredões de três metros de altura, sob o argumento de conter o avanço das casas e barracos sobre as áreas verdes;

 

  • A prefeitura paulistana já havia erguido, em 2005, rampas “antimendigo” de concreto nas extremidades da passagem subterrânea da Avenida Paulista que leva à Avenida Dr. Arnaldo, ocupando toda a área entre a calçada e o teto do viaduto, onde antes viviam sem-tetos. A superfície bem inclinada e o acabamento chapiscado – áspero e incômodo – das rampas impossibilitaram o uso do local como abrigo. Em 2010, a gestão municipal de São Paulo começou a construir outra rampa “antimendigo”, desta vez no viaduto João Julião da Costa Aguiar, em Moema;

 

  • Em 2021, durante a pandemia de covid-19, novamente a Prefeitura de São Paulo recorreu à arquitetura hostil, ao instalar pedras embaixo de um viaduto no bairro do Tatuapé, com o intuito de impedir que moradores de rua se abrigassem ali à O caso recebeu muita atenção dos meios de comunicação, quando o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, usou uma marreta para tentar arrancar, ele próprio, as pedras, como um ato de protesto e de resistência.

Arquitetura humana e urbanização igualitária

As táticas utilizadas na arquitetura de exclusão não são capazes de resolver nem os problemas com a segurança e nem as dificuldades para quem vive em situação de rua. Na verdade, cria uma falsa segurança para uns, e desconforto e risco para quem é indesejado, tornando ainda mais difícil a vida deste que já batalha tanto pela sobrevivência. Além disso, segundo Contarato, a expulsão por meio da arquitetura de exclusão agrava a desigualdade social.

Qualquer pessoa tem o direito e merece ser capaz de utilizar os locais públicos do modo que precisa, claro que dentro daquilo que é seguro para todos. Fabiano Contarato expõe que “não bastassem a invisibilidade e as mazelas sofridas pelas pessoas em situação de rua, o Estado, sob pressão do capital financeiro, tenta removê-los até mesmo de um lugar em que se abrigam da chuva”. Privar um indivíduo que necessita utilizar um espaço para se abrigar ou dormir é uma crueldade desmedida. Marginalizar grupos específicos, os abominando e impedindo que estejam em certos lugares, não torna os espaços mais funcionais, nem desenvolvidos, tampouco deve ser algo pensado e feito pelo Estado. O senador explica que “o desenvolvimento urbano está umbilicalmente ligado à redução da marginalização e qualquer ação em sentido contrário deve ser repudiada pelo Estado”.

Fabiano também ressalta que ser contra a esse tipo de desenho urbano não é ser a favor da “fixação das pessoas em situação de rua nesses espaços, pois acreditamos que a solução está na criação de políticas de habitação, responsabilidade de todos os entes federativos, nos termos do art. 23, IX, da Constituição Federal”.

Os locais, especialmente os públicos, precisam ser democráticos, abandonando essa arquitetura incômoda, que é mão inteira na ferida de quem não tem nem como se remediar. É preciso partir para soluções que realmente funcionem, feitas de forma humanizada, onde todos possam fazer parte da cidade.

“Os espaços e equipamentos urbanos devem ser compatíveis com a natureza da cidade enquanto lugar de encontros, trocas e oportunidades, com uma cultura urbana compartilhada por grupos sociais heterogêneos. Para tanto, esses espaços e equipamentos devem ser resultado de planejamentos e projetos mais democráticos, inclusivos e humanizados, baseados na lógica de acessibilidade universal, usufruto público e gratuidade que define os espaços públicos”, explica a professora Patrícia.

Ambientes públicos são espaços de relações, convívio e confronto, “um espaço público onde você só tem situações iguais às suas é uma situação privada de um certo grupo de pessoas”, explica o arquiteto Vada. Ele acrescenta que “[…] a tendência é que quando você expulsa o estranho, você só tenha convivência com os iguais e cada vez mais a relação entre público e privado se perde”, assim o indivíduo não consegue compreender que o público é local de confronto e o privado é de intimidade, do que conhece.

Debates e ações resolutivas precisam ser feitos frente às problemáticas que a arquitetura hostil é e provoca. Patrícia Alonso afirma que é necessário refletir sobre as perspectivas que surgem para a cidade “a partir desse processo de exclusão planejada, com efeitos inibidores para as sociabilidades urbanas”. Ela acrescenta que os prejuízos à paisagem e dinâmica urbanas podem “colocar em xeque o espaço público enquanto espaço de vivência em meio à diferença”.

Patrícia deixa uma série de questionamentos que a qualquer sinal de humanidade e empatia faz com que você repense como realmente o convívio urbano deve ocorrer; como os ambientes, principalmente os públicos, devem ser utilizados; e como a dinâmica urbana e social precisa ser enquanto o verdadeiro “x” da questão não é resolvido, que é a desigualdade social.

“Qual a cidade que queremos? A cidade dos encontros ou a hostil e segregada? A cidade vigiada e controlada ou a democrática e política? Que futuro se deseja para as cidades, e qual o futuro possível? Poderão substituir as barreiras por pontes de contato em cidades com populações cada vez mais heterogêneas? E enquanto não se resolvem os problemas sociais, como devem ser tratados os espaços?”.