Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

É impressionante como a fala feminina incomoda. Eu sei que o corpo feminino incomoda também, embora seja o grande objeto de troca e consumo entre homens e o mercado, mas a fala feminina, sem dúvida, é aquele gelo que escorrega do copo de campari e trava na garganta de tantos homens. A palavra, a fala e a escrita. Eu confesso realmente que estou aqui para incomodar. E assumo que meu ofício desagrada porque escrever é a arte de falar o indizível. Muitas vezes, é na escrita que são postas palavras difíceis de dizer ou negadas de se ouvir. Mas eu nem sempre quis assim, passei boa parte da minha vida de menina e mulher tentando agradar. Mesmo as famílias mais advertidas repetem esse modelo acachapante de formação de mulheres nos recomendando algum tipo de adequação e cuidado para sermos aceitas, felizes e termos sucesso na vida e nos casamentos.

Seu avô ficava incomodado quando uma mulher da sua geração se posicionava numa empresa para além do papel de secretária. E parecia natural, já que tudo reforçava a noção de que as mulheres tinham um espaço e um projeto de vida já desenhado. E isso, apesar de pertencer ao passado em termos de legislação, ainda é atual na lógica das relações. O patriarcado era mais notório nas antigas gerações já que economia, política e cultura eram dominadas pelos homens (feitas para eles, por eles, a serviço deles). Lembremos que as mulheres conquistaram direito ao voto em 1932, em 1934 foi incorporado à constituição e somente em 1965 o voto feminino foi equiparado ao masculino como dever e direito. E não duvido que esta graça nos tenha sido concebida por interesse masculino, já que os candidatos eram majoritariamente homens. Isto é o patriarcado, um sistema que funciona para criar, manter e fortalecer espaços e privilégios masculinos.

“Ai, mas na minha casa não é assim”. É sim! Em praticamente todos os lares temos resquícios desse processo, seja na divisão de tarefas domésticas, no tempo de estudo de cada filho, nos planos e projetos aspirados por meninos e meninas numa família e até mesmo pelas orientações dadas pelos pais e mães sobre como se vestir, se portar e se proteger de uma sociedade que simplesmente extermina meninas e mulheres. Enquanto o menino brinca na rua ou estuda em casa, é provável que sua irmã esteja ocupada em arrumar a cama ou lavar a louça, já que 81,4% das meninas são responsáveis por arrumar sua cama; 76,8% por lavar a louça e 65,6% por limpar a casa. Esses são dados da Plan International Brasil, que visa promover uma educação igualitária e de qualidade no país.

Apesar de tudo isso, as meninas dedicam mais tempo para estudar. Enquanto elas usam cinco horas e meia por semana para os estudos, os meninos ficam quatro horas e meia na mesma tarefa. Desde cedo uma conta que não fecha, já que, mesmo nas atividades profissionais que não exigem escolaridade, os homens acabam ganhando mais que as mulheres. E essa distorção acompanha a carreira das mulheres mesmo quando são mais qualificadas.

Se antes as mulheres não existiam para a ciência, o mercado, o voto ou fora das tarefas de cuidado pessoal e doméstico, hoje elas são aniquiladas por meio de violência física e moral para que voltem dos quartos de onde não deveriam ter saído ou, até mesmo deixem de existir. Esse é o recado e o controle que o machismo opera na sociedade patriarcal. E daí temos salários menores, menos cargos de chefia, menos representatividade social e política, apesar do salto em qualificação e dedicação de tantas mulheres, que ainda nos dias de hoje acumulam as tarefas de casa na operação delas ou na gestão das outras mulheres que as farão. Nem falo aqui da maternidade.

Você vai continuar com essa tradição supostamente do seu antepassado? Será mais um que parece sair do sério por conta das mulheres que se desacomodam e modificam a ordem das coisas? Mas que ordem é essa? Eles dirão que é a ordem natural das coisas. Eu direi, pelo que venho aprendendo com outras mulheres, que é a lei e a ordem de uma sociedade estruturada na esteira patriarcal.

Em resumo,  uma sociedade de domínio masculino cujo dinheiro, voz e decisões eram dos homens e às mulheres restavam coisas que eram permitidas fazer e todas as outras proibidas (como estudar).  Não apenas direitos eram negados, havia uma recomendação de valores e condutas as quais as (boas) mulheres deveriam seguir à risca.

Mas porque dói tanto aos homens desacomodar-se do papel de dominância e garantir espaço, direitos e apoio às mulheres? A maioria, aposto, vai negar que dói. E esta mesma maioria gosta de pensar num processo de igualdade feminina desde que não seja com “a sua” mulher.

A partir de hoje, nesse espaço de Opinião do IMJ, dedicarei pelo menos uma coluna do mês, dentre as temáticas de atualidade e política, para tratar de assuntos atinentes às mulheres como igualdade de gênero, machismo, violência, patriarcado, representatividade, carreira e educação.

Porque toda semana, garimpando notícias do cenário político nacional e as tretas internacionais dos países dirigidos por homens, sou atravessada por manchetes e chamadas de mulheres mortas por homens, sejam eles seus companheiros, ex-maridos, parentes ou vizinhos. Todas as semanas mortes absurdas que poderiam ser evitadas não só com ação policial mas com uma remodelação educacional que inicia na família e se estende a todas as entidades. Pela vida das mulheres, pela minha vida, pela vida das minhas netas, tratemos de falar sobre como somos reduzidas a tias da limpeza, esposas ou a pó, quando a eles interessa. Continuarei escrevendo até que deixe de ser incômodo quando uma mulher fala de poder, de justiça e de desejo. Continuarei escrevendo até que deixe de ser incômodo uma mulher com poder, que promove a justiça e que se guia pelos seus desejos. Porque é falando (e escrevendo) que se cria um novo caminho para todas nós.