Por Ana Joulie, Psicóloga especializada em patologias graves, fundadora e diretora clínica da Rede Internacional de Acompanhamento Terapêutico (RIAT)
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Já pararam para perceber que a maioria dos temas polêmicos importantes surgem através de personalidades que nos remetem a referenciais, por pessoas ou situações que nos representam? Ao se tratar de saúde mental, a questão parece ainda mais evidente. Até pouco tempo, falar sobre este tema era tabu e, desde o período pós-guerra, a sociedade vem sendo conduzida a olhar e dialogar sobre o assunto. Sabem por quê? Porque os “heróis da guerra” passaram a sentir, já naquela época, o que hoje já tem nome: o TEPT – Transtorno de Estresse Pós-traumático. E por que inicio esse texto falando dessa época e desse fenômeno dos soldados que voltaram da guerra? Porque foi a partir da representação deles que passamos a lidar e reconhecer os transtornos mentais. Assim como, atualmente, atletas do mundo inteiro nos fazem parar e refletir sobre nossa saúde mental.

Dentre os casos que surgiram nas Olimpíadas de Tóquio, o que se tornou mais alegórico, até o momento, foi o da ginasta americana Simone Biles, considerada a “melhor do mundo”. Carregando uma bagagem de quatro medalhas de ouro em Olimpíadas, Biles confessou sentir o fenômeno “twisties”, reação de perda de noção do espaço, e desistiu de participar da competição por equipes. Em seguida, na final na categoria individual, ela afirmou sentir “carregar o peso no mundo em seus ombros” e, por isso, desistiu de competir para cuidar de sua estrutura emocional, sua saúde mental, reconhecendo que como atleta também é uma pessoa e, às vezes, é necessário dar um passo atrás.

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Foto: Antônio Luzzatto/Divulgação RIAT

Além de Biles, outros atletas tiveram que lidar com questões de ordem psíquica/emocional no processo de treinamento e competição. Alguns não puderam competir, como a tenista campeã Naomi Osaka, que abandonou o French Open em junho. Outros trabalharam intensamente seus aspectos emocionais, como nossa medalhista Rebeca Andrade, que salientou que o acompanhamento psicológico foi ferramenta decisiva para que ela chegasse ao pódio e que “atletas não são robôs, são humanos”, e precisam encarar a competição com equilíbrio, inclusive, se divertindo nas competições.

A importância desses referenciais e de sua representatividade nos traz a oportunidade de conversar, conhecer, compreender e aceitar o fato, real e eminente, de que somos seres de soma, não somos robôs, absorvemos todos os estímulos que nos cercam, e, se nossa psique não estiver saudável, nosso corpo soma, padece e adoece. Quando somos representados por personalidades que se tornam referências, passamos a perceber melhor nosso meio externo e interno, nossos aspectos sociais e individuais, passamos a nos identificar e, desde essa proximidade identificatória, acendemos a enxergar nossos amigos, familiares, colegas de trabalho, faculdade etc., e nos tornamos mais propensos a naturalizar as questões que envolvem transtornos e doenças mentais, possibilitando diálogos e tratamentos sem preconceitos e banalizações.

A conexão e disciplina que o esporte nos traz gera uma ampla possibilidade de repensar nossas vidas, em sentido geral. Imaginem que os atletas olímpicos estão expostos e vulneráveis e que seus aspectos emocionais mostram que cuidar da saúde mental é fundamental para encarar uma competição, pois cada desafio/obstáculo deve ser enfrentado e vencido, que a vitória e a derrota fazem parte da vida, da competição. É condição normal do ser humano ganhar e perder, independente do alto ou baixo rendimento, do momento, da teoria ou do treino. Na maioria das vezes, depende da circunstância e estabilidade. A Olimpíada é o dia a dia! Percebam que todo dia somos acometidos por demandas de impacto estressor, com desafios, obstáculos, jurados, plateias, temos que bater recordes e sobreviver. Assim como também temos que aceitar derrotas e entender que está tudo bem e não paralisar.

Derrotas, lesões, feridas físicas e morais, perda de medalhas, troféus e status são uma realidade da qual ninguém gosta, não é mesmo? Pois é, mas isso é real, comum e normal, além de necessário para nossa formação como indivíduos. Porém, temos a necessidade moral de ir contra esses sofrimentos, resistimos, nos frustramos e demoramos muito para aceitar a condição de fracasso. E isso é normal? Depende. Temos que cuidar muito sobre os critérios que nos geram resistência e impossibilidade de aceitar fracassos, pois o sofrimento psíquico inibe nossas pulsões de vida, nos fazendo regredir e paralisar. Costumamos pensar que se não somos fortes, positivos, se não engolimos o choro, não somos capazes de sobreviver às demandas da vida. No entanto, não é bem assim. Podemos e devemos sentir e lidar com essas questões, só assim vamos passar de fase e seguir produzindo, com a certeza de nossos aspectos humanos.

O adoecimento mental não aparece em um exame de raio-x, não é visível. Muitas vezes é incompreendido, dado como algo complexo, difícil de entender e gera bastante resistência emocional de acender consciência. Vemos pessoas aparentemente bem, saudáveis, e quando menos esperamos, bum – “não participará mais da competição”. Qualquer um pode se deparar com debilidades e desajustes psíquicos, emocionais, cognitivos e sociais. O adoecimento mental é algo construído desde a soma de múltiplos fatores. Para tratar, lidar e combater, é necessário falar. É preciso criar coragem e pausar para cuidar, como bem fez a gigante Biles diante de todo o mundo.

As Olimpíadas nos trazem um espelho enorme de representações e referencias! Assim como Simone Biles, Rebeca Andrade e Naomi Osaka, também precisamos nos posicionar frente às demandas de nossa saúde mental e buscar fazer o que essas personalidades fizeram, contextualizando nossas vivências e condições, assim como também fizeram os atletas: Hassan Sifan, que caiu, levantou e venceu. Os atletas e amigos da Itália e do Catar que dividiram o ouro no salto com vara, ao se apoiarem. Rayssa Leal, nossa fadinha, que se tornou a primeira medalhista mais jovem em 85 anos de Olimpíadas, sendo tão novinha, não deixou de conquistar seu sonho e o fez se divertindo. Laureal Hubbard que entrou para a história ao se tornar a primeira esportista transgênero mulher a participar da disputa. Ana Marcela, nossa medalhista de ouro, que conseguiu nadar por duas horas, sem parar. Italo Ferreira, ouro no surfe, e Allison dos Santos, medalhista de bronze no atletismo. Eles superaram diversos obstáculos financeiros e sociais, além de físicos e chegaram ao pódio, entre tantos outros que se tornaram ícones da história dos jogos olímpicos e inspiram a humanidade, em tempos de pandemia.

Inspire-se em alguém! Fale sobre você! Se cuide! Peça ajuda sempre que precisar, independentemente de sua posição, e entre no jogo da vida com a mente, alma e corpo saudáveis. Se se permitir fazer isso, já está no pódio!