Por Sara Café, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

“A mudança climática não tem gênero neutro. As mulheres e as crianças vão sofrer os maiores impactos e estarão expostas a riscos que irão afetar sua sobrevivência, saúde e segurança.”

Esse trecho faz parte de um relatório sobre o impacto das mudanças climáticas na vida das mulheres e foi publicado pela ONU Mulheres em 2022, mas tem sido a realidade especialmente sobre a tragédia que há mais de duas semanas assola o Rio Grande do Sul.

Em meio à crise climática que atingiu 461 municípios, o Ministério das Mulheres recebeu diversas denúncias de abusos sexuais contra mulheres e crianças em abrigos. Os relatos foram feitos por várias entidades durante uma reunião online com participação da ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, em que estiveram cerca de 40 pessoas, entre representantes do Conselho Estadual de Mulheres do Rio Grande do Sul e equipes de parlamentares, na última terça-feira (7/05).

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, em reunião com o governador Eduardo Leite | Imagem: Mauricio Tonetto/Secom

Segundo Fernando Sodré, chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, foram registrados no estado, durante a crise atual, cinco denúncias de crimes sexuais como uma tentativa de estupro, um abuso de vulnerável e casos de importunação sexual.

“O abrigo é realmente uma preocupação, porque nós temos abrigos aqui com 7 mil, 8 mil pessoas. Nós estamos com mais de 460 abrigos no estado, então é muita gente abrigada”, relata Sodré. Ele garante que há policiais civis e militares fazendo rondas nos abrigos e, em alguns casos, principalmente em abrigos grandes, fazendo a segurança desses espaços 24 horas por dia.

Grupos vulneráveis

Desalojada pelas inundações em Porto Alegre (RS), que a fizeram “perder tudo”, a recicladora Pamela Cristina de Brito está vivendo em um abrigo na cidade exclusivo para mulheres e seus filhos. 

Ela conta que não foi vítima de nenhuma situação no abrigo misto onde estava anteriormente e nem tenha ficado sabendo de casos de importunação e violência sexual, mas sente alívio por estar em um ambiente sem homens, com “mais privacidade”.

“Eu me sinto confortável mais pela minha filha, que é uma adolescente. Ela pode tomar banho, se trocar, pode caminhar sem medo nenhum que ‘vai ter um homem ali que vai ficar me olhando’ ou ‘vai ter um homem ali que vai ficar me falando alguma coisa'”, conta em entrevista à BBC News Brasil.

Atuando como voluntária no abrigo em Canoas/RS, a médica e ex-participante do Big Brother Brasil Marcela McGowan ajudou a mobilizar a montagem do abrigo. Em situações de catástrofe, avalia ela, as mulheres atingidas perdem ainda rede de apoio e ficam mais expostas.

‘‘O que a gente viu na montagem do abrigo e nesses espaços é a possibilidade de garantir para essas mulheres mais segurança, em primeiro lugar, e conforto diante dessas situações’’, diz ela. ‘‘Tanto que a gente ouviu de mães: é a primeira vez que estou dormindo depois de tanto tempo, posso deixar meus filhos tranquilos. Esses espaços garantem um pouco o resguardo das mulheres da sua saúde física e mental”, relata em entrevista ao Valor Econômico. 

Segundo o Ministério Público, a realidade vista hoje nos abrigos são reflexos do que já acontecia nas casas dessas pessoas. “Os abrigos reproduzem o que infelizmente aconteceu nas casas dessas vítimas. Então nesse microcosmos que se criou ali essas coisas aparecem aos olhos da sociedade. Mas o MP está atuando em todas essas áreas”, afirmou um porta-voz da comunicação do órgão.

Essa estrutura da violência também é destacada pelos movimentos Me Too Brasil e Instituto Survivor, que estão atuando juntos na proteção desses grupos em todo o Rio Grande do Sul. Segundo uma nota conjunta, as arrecadações já possibilitaram a abertura de dois abrigos, um em Canoas e outro em Novo Hamburgo, para o acolhimento e apoio de mulheres e crianças em situação de violência, gestantes, idosas e mães.

Para Izabella Borges, presidente e fundadora do Instituto Survivor, a violência sexual não acontece em razão da catástrofe, mas pelo fácil acesso de agressores e predadores sexuais às vítimas em situação de extrema vulnerabilidade.

“Os relatos de abusos sexuais de crianças, adolescentes e mulheres nos abrigos são alarmantes. Há casos de mulheres vítimas de violência doméstica convivendo com seus agressores nos mesmos espaços. As violências ocorrem, segundo relatos, em banheiros sem vigilância adequada, especialmente durante a noite, mesmo com a presença da polícia”, explica Borges.

Mulheres e crianças em abrigos exclusivos | Imagem: Fernando Otto/BBC

A ONG Visão Mundial está realizando ações semelhantes e mobilizando para criar dois espaços exclusivos para crianças, com apoio psicossocial além de itens básicos, artigos para reconstrução de seus lares, como mobiliário doméstico, eletrodomésticos e auxílio de renda para atender às necessidades urgentes, como a compra de medicamentos para os próximos meses.

“As crianças, um dos grupos mais vulneráveis em meio a crises, muitas vezes não têm a menor noção da magnitude dos eventos que estão vivenciando. Elas se encontram desprovidas de suas bases mais fundamentais e estão sob um impacto psicológico devastador que, sem a intervenção adequada, pode deixar cicatrizes duradouras”, afirma Thiago Crucciti, Diretor da ONG Visão Mundial Brasil.

No município de São Leopoldo, um dos mais atingidos pelas enchentes, um novo abrigo foi criado exclusivamente para puérperas (mães que tiveram filhos recentemente), recém-nascidos, gestantes no 3º trimestre e crianças internadas no hospital Centenário que estejam em alta hospitalar. 

Protocolo

O documento intitulado ‘‘Protocolo de proteção às mulheres e crianças em situações de emergência climática’’, elaborado por um comitiva do Ministério da Mulheres, deve ser analisado pela Advocacia Geral da União (AGU) e pela Casa Civil antes da assinatura, e depois publicado nos diários oficiais da União e do Estado.

Inspirado em casos como o furacão Katrina, nos Estados Unidos, e o terremoto no Haiti, prevê, entre outras coisas, que o acolhimento deverá garantir ‘‘a existência de serviços de abrigamento exclusivos para mulheres e seus filhos, com equipe de profissionais exclusivamente de mulheres’’ e reforço na equipe do Centro de Referência da Mulher Vânia Araújo Machado, ligado ao governo estadual.

‘‘Vamos apoiar, porque são abrigos importantes e fundamentais. O protocolo vai estabelecer as diretrizes, as linhas, estratégias e ações que devem ser seguidas, inclusive, por abrigos privados e particulares que existem hoje e que existirão no futuro’’, afirmou ela ao Valor.

Cuidado com a desinformação

De acordo com Cristiane Ramos, diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, há atualmente três abrigos no estado voltados exclusivamente para mulheres. “Tem muita fake news, tem muita notícia de crimes gravíssimos circulando, e a gente desloca uma equipe para esse local, chega lá e na verdade não aconteceu aquela situação”, diz Ramos.

A Promotora de Justiça no Ministério Público do Rio Grande do Sul, Ivana Battaglin também demonstra preocupação com a desinformação. “Alguns casos de importunação sexual foram equivocadamente relatados como abuso ou estupro, alimentando ondas de desinformação que levaram a um clima de pânico, retratando todas as mulheres e meninas como extremamente vulneráveis nos abrigos”, aponta a promotora.

“Precisamos ressaltar isso para evitar o pânico de que os abrigos são perigosos ou desprotegidos. Conhecendo essa realidade, o Estado tem investido em policiamento, guarda municipal e pessoal noturno para monitorar as instalações e prevenir situações indesejadas, como idas e vindas aos banheiros”, complementa Battaglin. 

O que diz o Estado

Em nota sobre os casos de violência e abuso nos abrigos, a Secretaria de Segurança Pública afirma que “o Poder Público estadual não tem medido esforços para amparar a população gaúcha, em especial, no Vale do Taquari, na Serra Gaúcha, na Região Sul, em Porto Alegre e na Região Metropolitana.”

As mulheres que forem vítimas de abuso ou importunação, podem acionar a Polícia Militar (190), a Polícia Civil (197), a Central de Atendimento à Mulher (180) ou o Disque Denúncia (181).

Mulheres interessadas em serem acolhidas em abrigos exclusivamente femininos devem buscar os centros de triagem nos seus municípios. Esses locais são responsáveis por encaminhar pessoas para os abrigos disponíveis. 

LEIA TAMBÉM:

Enchentes no RS: entenda a cronologia da maior tragédia no estado

Tragédia no RS: roubo de barcos, casas saqueadas e fake news preocupam o governo

Bares e Restaurantes do Rio Grande do Sul enfrentam situação crítica