Por Ana Joulie, Psicóloga especializada em patologias graves, fundadora e diretora clínica da Rede Internacional de Acompanhamento Terapêutico (RIAT) 
anajoulie@riat.app 
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista  
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista

A pandemia trouxe consigo uma diversidade de problemas indiretos para a sociedade, sejam eles de aspecto econômico, social, laboral, emocional, doenças orgânicas que preexistiam etc. Isso afeta a todos, nas mais diversas idades. Crianças são menos vulneráveis ao vírus, apresentam até agora uma baixa taxa de mortalidade, porém, elas estão em altíssima vulnerabilidade nos aspectos emocionais.

Quando se fala sobre crianças em contexto de Saúde Mental, não podemos deixar de expor as fases do desenvolvimento infantil, pois cada idade traz demandas específicas a serem observadas. As fases são: primeira infância, fase pré-escolar, período de latência e estágio da puberdade.

Na primeira infância, a criança lida com suas primeiras descobertas fora do útero, passa a conhecer e se adaptar ao ambiente e às pessoas (pais, irmãos, avós, tios) que as rodeiam, desenvolve habilidades básicas como comer, falar, andar e passa a expressar sentimentos de maneira ainda não ordenada. Na segunda fase, a pré-escolar, a criança passa a ter seus primeiros contatos sociais fora do contexto familiar e possui melhor desenvolvimento motor. É nessa fase que, segundo a teoria freudiana, a criança enfrenta o período edipiano, em que sente um apego significativo com suas figuras parentais. É nesse período que a relação familiar fixa questões decisivas para a área emocional, sentimental, e isso direciona como a criança terá seus relacionamentos “amorosos” no futuro. Quando a criança chega aos seis anos de idade, entra na fase de latência, ou seja, segunda infância. Nessa etapa, passa a lidar com suas frustrações e realizações, perdas e ganhos, produções e limitações. Segundo a teoria freudiana, é nesse período que as crianças passam a ter conflitos com as figuras de autoridade, sejam elas pais ou responsáveis, incluindo educadores. A última fase, que se torna o estágio da puberdade, que considera a idade de dez a 18 anos, surgem as questões relacionadas ao corpo e preparação cognitiva para a vida adulta. Aqui, elas lidam com transições hormonais, sociais, intelectuais, afetivas, tensões e expectativas diante do início da vida adulta.

Em todo processo de desenvolvimento, a dualidade está presente, pois, assim como existem os avanços e aprendizados, existem as perdas, falhas e frustrações. E ter que lidar com essas questões, naturais da vida, em meio a uma pandemia, não é nada fácil. As crianças estão restritas, limitadas e sofrendo com os efeitos do distanciamento social, porque deixaram de abraçar seus avós, não podem ir aonde desejam, não estão podendo festejar seus aniversários com amigos e familiares, passaram a não praticar esportes, a não ir ao colégio etc., além de terem que lidar com o medo e preocupações relacionados ao vírus.

Além dos aspectos já citados, quero salientar que as crianças absorvem muito as emoções de seus pais e responsáveis, e como não possuem estrutura emocional forte e consolidada, acabam se sentindo culpados e responsáveis pelas frustrações e condições deles. Toda dinâmica da casa é absorvida pelas crianças: a percepção de que seus pais estão preocupados, ansiosos, doentes, irritados, as brigas da casa, são todas situações que geram muito estresse no momento, o que pode levar a alguns comportamentos disfuncionais ou até mesmo a transtornos mentais.

Cada criança é um “mundo singular” e, por isso, algumas possuem habilidade de compreensão melhor que outras, isso depende também da idade e ambiente social em que vivem. Algumas conseguem expressar suas emoções de maneira direta, desde uma comunicação verbal, falam sobre seus medos, inseguranças e preocupações. Outras não possuem habilidades para expressar, e se comunicam de forma indireta, desde o não verbal, como insônia, irritação, compulsão, agressividade etc. Dependendo da condição de cada criança, os efeitos da pandemia podem ser tidos de forma superficial ou não, no entanto, todas passam a sentir medo do vírus, esse vilão invisível que gera diversos tipos de fantasias.

Foto: Fernanda Dora/ Divulgação RIAT

As crianças possuem alta capacidade de fantasiar, por isso são muito criativas. A criatividade pode se tornar um recurso operativo essencial nesse período, gerando um melhor processo de desenvolvimento e fortalecendo sua base emocional. Estimular a criatividade das crianças nesse momento de pandemia é importantíssimo, pois habilita nelas a capacidade de enfrentamento e aceitação e constrói resiliência. Uma criança que consegue elaborar um processo de perda e ressignificar determinadas questões, certamente, será um adulto ajustado emocionalmente.

Quando ocorre uma perda, seja ela por um objeto ou por uma relação interpessoal, logo depois deverá existir um processo de aceitação dessa perda. Elaborar a perda e alcançar a aceitação é um processo difícil, especialmente para as crianças. No entanto, quando a criança consegue sentir os efeitos da aceitação, adquire habilidades fundamentais para seguir adiante. Aprendem a lidar com as adversidades, se tornam mais flexíveis, possuem maior capacidade de regular suas emoções, reduzem a ansiedade e estresse.

Crianças são pessoas que dependem de outras pessoas para sobreviver em distintos aspectos, por isso, precisamos entender que os pais ou responsáveis, que são os protagonistas do desenvolvimento delas, precisam reconhecer quando a criança está sentindo de forma negativa os efeitos da pandemia. Somente com essa atenção direcionada às crianças será possível minimizar danos emocionais. Transmitir segurança, acolhimento e informações precisas sobre o momento que elas estão vivendo é responsabilidade dos adultos que as mantêm.

Existe um grupo de crianças que, durante a pandemia, teve traumas mais severos, por já padecerem de algum transtorno mental, deficiências, situação econômica, ou porque tiveram seus pais como vítimas da covid-19 (há uma geração significativa de órfãos, principalmente em nosso país). Alguns se tornaram órfãos, outros intensificaram seus sintomas, e muitos passaram a ter dificuldades econômicas severas. Se um adulto já se torna totalmente vulnerável a questões emocionais, imaginem as crianças, que enfrentam traumas tão significativos com poucos recursos cognitivos e emocionais para compreender tais danos. Ainda citando grupos de crianças, exponho também as crianças que são filhos dos profissionais da saúde. Estes tiveram que lidar com a ausência de seus pais e o medo de contágio, além de absorver toda a demanda trazida direta e indiretamente por eles.

Atualmente, as crianças que estão na fase de primeira infância estão lidando com um padrão de “normalidade” específico, que, em algum momento, deixará de ser, pois utilizam máscaras, álcool em gel, seguem o distanciamento físico e social, estão com mais acesso aos recursos tecnológicos e começam a fase pré-escolar desde dispositivos virtuais. Já as crianças que estão na segunda fase, o período de latência, estão em processo de lidar com o “novo normal”. Estão no processo que transita entre o desajuste e a adaptação. Estes também terão que transitar pelo processo posterior à pandemia.

Não sabemos ao certo quando a pandemia da covid-19 acabará, mas sabemos, com restrição, que em algum momento a imunização terá resultados positivos, que o distanciamento físico e social terá sua falência e que a economia também passará ao estado de regulação. Também sabemos que os traumas adquiridos na pandemia deixaram suas marcas, cicatrizes que desenham luto e sobrevivência, perda e resiliência. E que as crianças precisam de muita atenção e cuidado, pois estão em processo de desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social. Quando esse tempo acabar, elas deverão estar prontas para seguir suas vidas de forma adequada.

Independentemente da idade de cada criança que vivencia os efeitos da pandemia, suas memórias e vivências estarão armazenadas em seus sistemas psíquicos. Isso é fato. Todo tipo de estimulação sensorial causa registro mental, gerando emoção e informação psíquica. As crianças não estarão isentas desse armazenamento. Contudo, se forem bem observadas, acolhidas e cuidadas, poderão utilizar os recursos da criatividade e derivar todo esse conteúdo pandêmico a uma elaboração emocional saudável, desde o lúdico, o literal, o afetivo, o social, seja ele físico ou virtual trará boa estrutura emocional às crianças.

Felizmente, já temos muitos estudos relacionados a esse assunto, o que é maravilhoso, porque cuidar da Saúde Mental das crianças é cuidar de um futuro melhor.

Vou deixar aqui o link de um material desenvolvido pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que ajuda adultos a estimularem a criatividade e desenvolvimento da criança na primeira infância, a partir de materiais simples, e pode ajudar a todos enquanto vivemos a pandemia, e depois:

Guia de atividades e brincadeiras para famílias com crianças de 0 a 6 anos | Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (fmcsv.org.br)