Melissa Rocha – Jornalista – RJ
Editora-chefe: Letícia Fagundes

Depoimentos de ex-ministros da Saúde na CPI reforçam o que já era de conhecimento público: obsessão do governo federal em torno do tratamento precoce custou vidas – e muitas

 

O Brasil perdeu nesta semana o ator Paulo Gustavo. Uma estrela em ascensão da comédia, Paulo morreu precocemente, aos 42 anos, vítima da covid-19, e se somou às mais de 411 mil mortes em decorrência da doença, que poderiam ter sido evitadas, caso a pandemia tivesse sido enfrentada de maneira séria e unificada, desde o primeiro dia em que o vírus foi detectado em território nacional.

Mas não foi o que aconteceu, e é exatamente isso que a CPI da Covid vem expondo. Já no primeiro dia da fase de depoimentos, na qual foi ouvido o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, uma revelação grave veio à tona: Jair Bolsonaro mantinha uma assessoria paralela à equipe técnica do Ministério da Saúde, que tinha prioridade nas decisões do presidente em relação à pandemia. Segundo Mandetta, foi essa assessoria paralela que orientou o mandatário a alterar a bula da Cloroquina, à revelia e sem estudo clínico, para incluir entre as indicações do medicamento o combate à covid-19. Bolsonaro chegou a preparar um decreto para a alteração, mas foi dissuadido da ideia pelo presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres.

Um detalhe curioso: essa equipe paralela incluía o filho do mandatário, Carlos Bolsonaro. Vereador pelo município do Rio, onde mantém um salário de 14 mil reais, mais benefícios, Carlos integrava essa assessoria clandestina, em Brasília, sobre um assunto totalmente fora de sua alçada. Um desperdício do dinheiro do contribuinte e uma zombaria com aqueles que acreditaram na promessa de que Bolsonaro governaria cercado por “nomes técnicos”.

Vale também destacar a atuação de Mandetta na CPI. Com um tom acusatório contra Bolsonaro, por vezes, sua fala tinha contornos de candidato. Ele falou apaixonadamente sobre a “defesa intransigente da vida” e do SUS. Nem parecia o político que, há alguns anos, foi eleito deputado com a chancela – e um considerável apoio financeiro – da bancada da saúde (leia-se bancada dos planos de saúde), e que tinha como missão dar andamento à política iniciada no governo Temer de elevar o lucro das operadoras, à custa dos usuários dos planos. Nem parecia o ministro que, ao longo de sua trajetória, fez lobby ativo pelo desmantelamento do SUS, e que, no início de 2019, defendeu o fim da gratuidade universal do sistema – o que vai contra a Constituição, que prevê que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Nem parecia, mas não se engane pelo teatro: era o mesmo Mandetta, que em termos de defesa à vida não é nenhum herói.

Retornando à análise da CPI, o segundo depoimento, dado pelo também ex-ministro da Saúde Nelson Teich, contribuiu para colocar Bolsonaro como elemento central do caos pandêmico. Mais cauteloso que Mandetta, Teich confirmou a obsessão do mandatário com tratamentos precoces ineficazes, e afirmou que foi a insistência no uso da cloroquina, somada à falta de autonomia que tinha frente à Pasta, que o levaram a pedir demissão. Teich também pontuou que se o Brasil tivesse implementado uma estratégia de foco na vacina, “provavelmente teria um acesso maior e mais precoce à vacinação”. Em outras palavras, a obsessão do Planalto por um tratamento fantasioso e comprovadamente ineficaz, em detrimento de uma política voltada desde cedo para aquisição de vacinas, custou vidas – e muitas.

Faltam comparecer à CPI o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que depõe nesta quinta-feira, 6, e o ex-ministro Eduardo Pazuello. Este último, que promete ser o ponto alto da CPI, deveria ter sido ouvido na última quarta-feira, 5, mas teve o depoimento adiado para o dia 19. Ele pediu um prazo de 14 dias, alegando que teve contato com dois assessores que contraíram covid. Ao que tudo indica, Pazuello usará esse tempo para preparar melhor seu depoimento – um comportamento bem cauteloso, que contrasta com a bravura indômita explicitada durante seu passeio, sem máscara, em um shopping de Manaus.

Até o momento, os depoimentos de Mandetta e Teich apontam o que todos já sabiam: Bolsonaro nunca se preocupou, de fato, com a pandemia, mas sim com a fidelização de seu eleitorado. Para isso, fez do tratamento precoce parte de sua ideologia. Esse desdém não é uma novidade. Ele deixou claro que essa seria sua postura já no início da pandemia, em uma cena emblemática, protagonizada em frente ao Palácio da Alvorada, em 3 de março de 2020 – quando havia apenas dois casos de covid-19 confirmados no Brasil. Naquele dia, Bolsonaro apareceu diante da imprensa, mas não para alertar sobre a chegada do novo coronavírus ao Brasil ou informar as ações do governo para contê-lo, como fizeram líderes de outros países. O que ele fez foi levar um comediante fantasiado de Bolsonaro para falar com os jornalistas e distribuir bananas aos profissionais. A ideia, ali, era desviar a atenção das inevitáveis perguntas que viriam sobre o crescimento do PIB abaixo do esperado em 2019 – lembrando que, poucos dias antes, projeções apontavam uma expansão de apenas 1% do PIB, o menor avanço desde 2016. Sobre a pandemia, nenhuma palavra.