“Considerou-se que as mulheres deveriam dar à luz com dor porque isso estava escrito na Bíblia”
Por Letícia Fagundes, Jornalista
Raramente escrevo em primeira pessoa, mas hoje se faz importante. O Instituto Mulheres Jornalistas foi reconhecido em dezembro de 2023 por um dos maiores e importantes prêmios de Direitos Humanos no Brasil. Com uma reportagem que falava de uma medicina que estava andando para um lado oposto de cuidados, sabíamos ques estavámos tocando em uma ferida que jorrava sangue. Como jornalista me aprofundo sempre, sem freios, em assuntos que não estão inteiramente respondidos. Me incomodou e me incomoda muito, saber que uma centena de mulheres no Brasil foram até delegacias da polícia dar parte de abusadores, que seriam seus ginecologistas. O tema de falar de médicos abusadores era meu e novamente uma equipe inteira de jornalistas importantes abraçaram e fizeram se tornar realidade.
Depois do choque de apuração, busquei em livrarias temas que correlacionarem as pautas sobre medicina e as críticas, mas dessa vez pelos próprios médicos e achei um livrinho pequeno, intitulado no Brasil de “A fabulosa história do hospital”, traduzido, escrito por Jean Noël Fabiani Salmon, um médico cirurgião cardiovascular, Professor Emérito da Universidade de Paris sobre história da medicina.
Jean tem um vasto currículo, 76 anos e alguma história para contar.
Me debrucei e resolvi encontrá-lo pelo mundo e o achei. Encontrei ele no mesmo meio que pessoas são influenciadas negativamente a fazer cirurgias plásticas sem necessidade, a internet.
Era importante falar com um médico que há anos tem se dedicado a contar, sem muito filtro, o que a história médica vem apresentando.
Laboratórios que financiam a pesquisa de médicos e a anestesia no parto considerado coisa do capeta, afinal o corpo feminino deveria sentir dor senão Deus não estaria com você e seu filho.
Considerando que atualmente há situações mascaradas, outras publicitárias na medicina, como o corpo perfeito (idealizado sei lá por quem), podemos dizer que evoluímos em termos de hospitais, algumas pesquisas como as vacinas (que não mataram as tropas de Napoleão Bonaparte com varíola), mas sabemos dos interesses pessoais e é disso que me interessa para passar para todos vocês.
Qual interesse além do paciente? Vendeu-se a ideia de virar médico para ficar rico e ter uma posição de intocabilidade. O Brasil é um dos países que melhor paga médicos, o que mais também a cada dia abre um perfil novo de um médico influenciador (abraçados por uma legislação sem freios para fazerem isso).
E denovo, me pego, em primeira pessoa, pensando para onde está indo a medicina? Para onde estão indo os médicos? As pesquisas financiadas por alguma empresa de alimentos vai dar certo como?
Qual o sonho de um médico dcomo Jean, que se dedicou por anos estudar a história da medicina e dá aulas sobre isso?
Os estudantes de medicina precisam entender o quê? A universidade é inclusiva?
Acredito que a equipe do Instituto Mulheres Jornalistas vai ter boas pautas no futuro e continuaremos, como jornalistas, dando voz a questões e perguntas importantes que por anos ficaram adormecidas por falta de informação e interesses também entre mídia e consultórios.
Boa leitura!
No livro você aborda como a história na medicina fez o corpo dos pobres, muitas vezes até como testes. Como está isso atualmente? A medicina e os hospitais evoluíram no tratamento entre pobres e ricos?
Jean Noël Fabiani Salmon: Não podemos comparar a situação da medicina na Idade Média na Europa com a situação actual. Os hospitais medievais só tratavam os pobres graças à caridade da Igreja. Hoje, os hospitais públicos estão abertos a todos, ricos e pobres, e os cuidados são totalmente reembolsados, mesmo que envolvam operações cirúrgicas muito caras, graças à segurança social…
Você comenta sobre a universidade médica ter sido frequentada por estudantes com privilégios. No Brasil continua assim, poucos são os negros que entram nas universidades e concluem. Com sua experiência e vivência isso pode mudar, como?
Jean Noël Fabiani Salmon: Os estudos médicos são longos (entre 7 e 10 anos) e difíceis. Mas em França, por exemplo, são gratuitos e os estudantes são pagos quando começam a trabalhar no hospital. Noutros países são cobrados, o que obviamente cria uma seleção por dinheiro.
O viagra comercializado como medicação para ereção aos homens estava em etapa de testes para dilatamento de veias, ou seja, a medicação foi feita para outra situação, mas com os lucros financeiros e sem muita pesquisa comercializado para problemas de ereção. Comente a correlação dessa história com a ética médica
Jean Noël Fabiani Salmon: O sildenafil (Viagra) foi testado pela primeira vez para dilatar as coronárias e um estudo foi feito pela Pfizer. Mas os pesquisadores descobriram que os resultados foram ruins. Tentaram, portanto, recuperar os medicamentos dados como testes aos pacientes. Mas aqueles que tinham comprimidos de Viagra recusaram-se a devolvê-los. Foi então que os pesquisadores perceberam que havia um benefício inesperado
No livro você escreve falando que há médicos que ganham pós graduação em troca de favores para laboratórios, em prescrever medicações. Vivemos uma história da medicina recheada de lucros antes do paciente. Comente.
Jean Noël Fabiani Salmon: Não, não podemos obter diplomas de pós-graduação contra trabalho em laboratórios privados. Os estudantes de pós-graduação não estão autorizados a prescrever medicamentos até que sejam médicos. Mas laboratórios particulares podem ajudar um aluno que está fazendo sua tese e trabalhando em um assunto que lhe interessa. Caberá ao júri universitário verificar a objectividade dos resultados do aluno e atribuir-lhe ou não a nota. Somente os júris universitários são os garantes da qualidade de um trabalho. Os laboratórios farmacêuticos podem obter grandes lucros, e isso se justifica se a pesquisa for longa e extensa. Mas no caso do Viagra, que é um medicamento de conforto, é normal que não seja reembolsado pelo sistema de seguridade social. Os governos têm um papel fundamental a desempenhar na avaliação da qualidade dos medicamentos e na decisão de quais serão reembolsados e quais não serão.
Você tem um vasto currículo e é professor de história da medicina. Nos conte como a medicina evoluí citando algo bom e não evoluiu citando algo que não está ainda bom.
Jean Noël Fabiani Salmon: Obviamente, a medicina teve um progresso considerável ao longo dos séculos. Mas é evidente que esse progresso foi particularmente acentuado desde a Segunda Guerra Mundial. Atualmente, o aumento do conhecimento é exponencial, e os médicos terão que contar com a inteligência artificial para acompanhar o progresso nos próximos anos. No campo cardiovascular, por exemplo, o tratamento tornou-se excelente. Mas em outras áreas, como câncer e doenças neurológicas degenerativas, esperamos ver um progresso decisivo nos próximos anos.
Atualmente o Brasil é um dos países com maior número de cirurgias plásticas e o maior também em consumo de redes sociais, ou seja, a influência de corpos padronizados existe nesse ambiente virtual. Qual o papel do médico no combate a ética de não fazer procedimentos desnecessários mesmo que o paciente insista?
Jean Noël Fabiani Salmon: A cirurgia cosmética raramente salva vidas. Por isso, não deve ser incluída nas indicações estabelecidas pelos médicos. O que está acontecendo nas redes sociais com os influenciadores é, infelizmente, a expressão da estupidez humana e da necessidade de algumas pessoas de ganhar dinheiro às custas daqueles que são seduzidos pelo desejo de ter uma boa aparência. Infelizmente, não há nada que possamos fazer a respeito, a não ser condenar veementemente essas práticas: elas não são medicina!
Você cita muito a influência negativa da igreja em procedimentos e inclusive no avanço da medicina. Considerando esse papel negativo da religião, principalmente nos corpos das mulheres, onde as mulheres que pariam e pediam anestesia estavam fazendo algo errado, você acredita que isso poderá mudar no que se refere ao aborto?
Jean Noël Fabiani Salmon: Sim, é verdade que, por muito tempo, considerou-se que as mulheres deveriam dar à luz com dor porque isso estava escrito na Bíblia. Mas a igreja finalmente teve que aceitar a tendência à anestesia epidural. É verdade que a questão não surgiu quando a Bíblia foi escrita! Quanto ao aborto, nos tempos bíblicos a mortalidade infantil era muito alta (mais de 80% nas classes trabalhadoras) e, portanto, a religião era pró-natalista. Mas hoje o risco é o oposto: há humanos demais na Terra, e a legalização do aborto será a consequência…
As vacinas foram de suma importância para epidemias, como a varíola. As tropas de Napoleão Bonaparte conseguiram sobreviver porque foram vacinadas. Passamos por uma pandemia da COVID-19 e muitos morreram, até que uma vacina fosse feita. Como você enxerga a dúvida da população na agilidade de fazer uma vacina tão rápida?
Jean Noël Fabiani Salmon: As vacinas sempre foram debatidas por alguns membros do público. No século 19, a vacinação foi até acusada de fazer com que as pessoas desenvolvessem chifres, porque a vacina vinha das vacas! Recentemente, na França (terra natal de Pasteur), uma grande parte da população era contra as vacinas e o governo teve que impô-las. Tudo isso é apenas um reflexo da estupidez de parte da humanidade (por exemplo, os 8% que acreditam que a Terra é plana!).
Qual seu sonho para as próximas gerações médicas que você gostaria que acontecesse?
Jean Noël Fabiani Salmon: Meu sonho é que os médicos voltem ao cerne de sua profissão, ou seja, o paciente. A medicina técnica tem ocupado muito espaço nos últimos tempos. E os pacientes geralmente se perdem em raciocínios e decisões que estão além deles. A medicina é, antes de tudo, uma atividade humana, e o paciente deve permanecer no centro de tudo.