Apesar dos esforços de ativistas para melhorar a participação de mulheres nas pesquisas médicas, elas ainda são sub-representadas nos estudos sobre saúde 

A desigualdade de gênero está enraizada em sociedades do mundo inteiro ao longo de toda a história da humanidade. Na medicina não é diferente. Apesar dos esforços de ativistas para melhorar a participação de mulheres nas pesquisas médicas, elas ainda são sub-representadas nos estudos sobre saúde. Entre os diversos impactos dessa exclusão está a menor quantidade de tratamentos disponíveis para doenças específicas do sexo feminino. 

Até 1993, pesquisas clínicas com novos medicamentos não precisavam contar com a participação de mulheres nos testes. Somente naquele ano foi quando o Congresso dos EUA redigiu a política de inclusão dos Institutos Nacionais de Saúde na lei federal, exigindo que pesquisas clínicas incluíssem mulheres e minorias. Mesmo assim, ainda hoje, elas ainda são deixadas de fora de muitos estudos médicos e farmacêuticos. 

Sub-representação 

O estudo JAMA Network Open, publicado em junho de 2021, avaliou como a carga de doenças está associada à representação feminina em ensaios clínicos nos Estados Unidos. Os pesquisadores realizaram um estudo transversal usando informações do banco de dados da Clinical Trials Transformation Initiative para todos os estudos registrados entre 1º de março de 2000 e 9 de março de 2020. 

Um total de 20.020 estudos de intervenção envolvendo aproximadamente 5,11 milhões de participantes preencheram os critérios de inclusão e foram divididos entre aqueles com e sem dados sobre o sexo do participante. Destes, 99,2% incluíam estatísticas de sexo. 

Após análise, os pesquisadores descobriram que, entre eles, as mulheres eram consistentemente sub-representadas em estudos de oncologia, cardiologia, neurologia, imunologia e hematologia – resultado preocupante, uma vez que doenças cardiológicas e câncer são as principais causas de morte entre as mulheres norte-americanas. 

Resultados negativos para mulheres 

Segundo explica o médico endocrinologista Flavio Cadegiani, doutor em endocrinologia clínica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a diferença de gênero na pesquisa médica resulta em desvantagens concretas para pacientes mulheres. “A gente acha que, na fisiologia do corpo da mulher, tudo aquilo que não é exclusivamente feminino é uma cópia do homem, o que é longe de ser verdade. E os resultados disso são negativos”, diz. 

“As pesquisas com medicamentos, às vezes, deixam de encontrar resultados porque eles só funcionariam em um dos dois sexos. É bem possível que alguns medicamentos já testados sejam eficazes, só que funcionem somente para mulheres. Como os estudos não

analisam os resultados por sexo, e sim homens misturados com mulheres nas análises, a eficácia desses medicamentos se perde na análise estatística”, avalia Cadegiani. 

O médico ainda afirma que a grande maioria de pesquisas com medicamentos não realiza análises diferenciando pessoas dos sexos feminino e masculino para avaliar os resultados de cada um. 

“Assim, podemos ter um medicamento “x” que não funcionaria para homem, mas funcionaria para mulher. Se a pesquisa não testa separando homens e mulheres, acabamos perdendo uma oportunidade, porque hoje sabemos que boa parte das respostas aos remédios são específicas de cada sexo”, pontua. 

Diferenças hormonais 

Conforme Flavio Cadegiani, as mudanças hormonais e a possibilidade de mulheres engravidarem foram algumas das principais razões que levaram pesquisadores a excluir o sexo feminino de estudos clínicos por tantos anos. 

“As mulheres têm várias fases: há aquela na fase folicular do ciclo, a que está na fase lútea, a que usa anticoncepcional e a que está na menopausa. Então, temos quatro perfis de mulheres”, explica. 

Por isso, ele entende que cientistas deveriam incluir até mesmo maior quantidade de mulheres do que de homens em pesquisas. 

“Se for uma pesquisa com uma terapêutica de curto prazo, ou seja, tratamentos que duram menos de 10 dias, poderíamos dividir em quatro grupos de mulheres. Mulheres que estejam na fase lútea, versus mulheres que estejam na fase folicular, versus mulheres que usam anticoncepcional, versus mulheres que estão na pós-menopausa – inclusive dois grupos de mulheres pós-menopausa, com reposição e sem reposição”, exemplifica. 

Assim, Cadegiani considera que “as mulheres deveriam representar três quartos ou quatro quintos dos grupos de pesquisa, porque cada um desses grupos deveria ser igualmente representado nos estudos”. “Então, na verdade, não deveria ser um para um, em especial em pesquisas cujos impactos são potencialmente significativos para mulheres.” 

Sobre a gravidez o endocrinologista defende que as pesquisas poderiam incluir uma prescrição de anticoncepção para a mulher que desejar participar do estudo clínico. “Isso não é motivo para excluir a mulher”, ressalta. 

Machismo 

Ainda segundo o doutor em endocrinologia, o machismo também é um dos fatores que afastaram mulheres dos ensaios clínicos por tantos anos. 

“Um exemplo muito prático disso é como a gente ainda não consegue lidar bem, nem no âmbito da pesquisa, com mulheres com endometriose. Endometriose é uma doença subdiagnosticada, porque ela é de difícil localização às vezes em imagem. É a “dor da

mulher histérica”, historicamente falando, que eles dizem. Inclusive, sempre se usou esse termo “histeria” para mulheres.” 

“Então, não se acredita na mulher, no fundo, como um ato de misoginia. E, obviamente, temos uma pobreza de tratamentos para síndromes relacionadas ao sofrimento feminino”, completa Flavio. 

Para o especialista, é preciso que o currículo das universidades de medicina no Brasil passem a incluir essa preocupação com a mulher, para que estudos futuros avancem nesse sentido. 

Legislação brasileira 

Desde 1993 as pesquisas feitas nos EUA devem incluir mulheres. Porém, no Brasil, ainda não há lei neste sentido. 

“Vivemos em um país muito machista para pesquisas clínicas, que coloca inúmeros empecilhos para pesquisas com mulheres. Então, estamos muito atrás nesse aspecto”, avalia Flavio Cadegiani. 

No Brasil, há um projeto de lei de 2019 que determina a paridade de gênero em ensaios clínicos. Porém, o PL 3611/2019 está parado na Câmara dos Deputados desde então. Atualmente, ele aguarda parecer do relator na Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação (CCTI).