Por: Haline Farias, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Mulheres com deficiência têm sua sexualidade negada, são infantilizadas e menosprezadas

Por bastante tempo foi difícil para Sarah (25 anos) se ver como uma mulher atraente, pois grande parte das referências em relação à beleza, sensualidade e do que é desejável são de mulheres sem deficiência. “Foi um longo processo até eu entender a minha identidade como mulher, tendo a minha própria beleza.”

No início da adolescência, Sarah via as amigas sendo paqueradas e receberem flertes dos garotos, enquanto ela não era notada. Imagem: Acervo Pessoal/ Sarah Pacini

A jornalista e influenciadora digital Sarah Pacini possui uma deficiência congênita chamada “focomelia”, em decorrência do medicamento Talidomida. Casada há 5 meses, ela vivencia uma relação saudável com um homem também com deficiência. Porém nem sempre foi assim. Ela conta que, por um período, os relacionamentos amorosos e sexuais foram difíceis. “Até os meus 13 anos, fui mais complexada por isso, não era correspondida pelos rapazes que eu gostava e não me sentia digna de ser desejada”. Mas, aos poucos, a jovem foi construindo sua autoestima, que, segundo ela, embora fosse frágil, fez com que conseguisse se relacionar, ter vaidade e viver uma adolescência comum.

Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 demonstram que há 17,2 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, correspondendo a 8,4% da população. De acordo com o IBGE, o perfil do grupo é mais feminino, são 10,5 milhões de mulheres.  Advindos do capacitismo e preconceitos, diversos são os obstáculos e exclusões sofridos pelas mulheres com deficiência, dentre esses a negação da sexualidade e de uma vida amorosa.

Cynthia Jardim é psicóloga, tem 34 anos e em 2010 sofreu uma lesão na coluna por arma de fogo em uma tentativa de assalto. Ela tinha 21 anos e havia tido poucas experiências sexuais e amorosas.“Depois que lesionei foi um baque […] o corpo muda, a dinâmica muda e você perde sensibilidade (no caso da minha lesão), então eu fiquei um pouco desesperada na época, pois imaginei que nunca mais eu fosse ter uma vida sexual plena, nunca mais fosse ser bom, e que nunca mais eu teria um orgasmo […]”. Ela relembra que imaginava que jamais voltaria a ser feliz sexualmente e que no início foi bem frustrante, pois entrou em uma “cruzada” de aceitação, onde buscava muito da avaliação externa. “Eu precisava muito saber se realmente as pessoas queriam ficar comigo, se elas tinham interesse em mim, se eu ainda era bonita, mesmo que de cadeira.”

Ana Cláudia é autora do livro Sexualidade e Deficiência – Uma releitura (2021) e também uma das autoras do Manual Didático Educação Sexual Para Jovens com Deficiência Intelectual (2022). Imagem: Acervo pessoal/ Ana Cláudia

A professora Ana Cláudia Bortolozzi, docente em Educação Sexual, Inclusão e Desenvolvimento Humano; Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Sexualidade, Educação e Cultura (GEPESEC) e do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Sexualidade Humana (LASEX) do Departamento de Psicologia – Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista-Bauru, comenta que as mulheres com deficiência tem sua vida sexual, desejos e vontades de construir um relacionamento e/ou família questionados e desprezados até mesmo por profissionais da saúde que as atendem e familiares, o que faz com que elas não se sintam dignas de serem amadas e desejadas.

Ana Cláudia relata que é difícil trabalhar na psicologia a questão da reabilitação sexual dessas mulheres. “Primeiro temos que tratar a feminilidade, o direito à sexualidade, o direito a ter prazer com o próprio corpo, e a partir daí que elas vão entender que são sujeitos eróticos, que tem direito a se relacionar como qualquer pessoa, se assim desejarem.”

Essas mulheres têm sua sexualidade ignorada (principalmente as que fazem parte da comunidade LGBTQIA+), são marginalizadas nas relações sociais e não possuem acesso à saúde sexual. Mais do que não vistas, são esquecidas e, diversas vezes, sofrem com ridicularização e infantilização.  

Aos 18 anos, Sarah iniciou sua vida sexual. Ela fala que esteve com pessoas que não aparentavam ser preconceituosas, mas, em momentos de flerte, no ambiente virtual e também em festas entre amigos, às vezes, se deparava com comentários capacitistas como: “você é bonita, nem parece que tem uma deficiência”, “eu não me prendo a aparências, por isso fico com você” e “sempre tive uma curiosidade de ficar com pessoas com deficiência”.

Se hoje o capacitismo ainda é tão evidente e cruel, Cynthia conta que na época do seu acidente era ainda pior e mais retrógrado, então mesmo tendo conhecido bastante gente legal, ela também se deparou com muitas pessoas preconceituosas e capacitistas, que tinham resistência em conhecê-la e se relacionar com ela por ser uma PcD. Ela cita até que algumas pessoas verbalizaram para amigas e conhecidas coisas do tipo: “ela é legal, mas para mim não rola, mulher de cadeira não rola”. 

Cynthia complementa que teve alguns “pseudos” relacionamentos, “chamo assim pois foram pessoas que eu conheci, me interessei, pareciam interessadas, mas não evoluiu”, e anos depois ouviu de duas dessas pessoas que o motivo pelo qual o relacionamento não progrediu foi devido a ela ser cadeirante. “Apesar da pessoa gostar de mim, ela não conseguia lidar com a deficiência, com as limitações. Não me falaram, mas eu suspeito que também tinha certo constrangimento, vergonha de ter uma namorada cadeirante”. Atualmente, Cynthia é casada e fala feliz que vive um relacionamento integral com seu marido. 

Fetichização e assédio

Cerca de 25 milhões de brasileiras possuem alguma deficiência, de acordo com IBGE (2010), seja física, intelectual, visual, auditiva, múltipla ou mental. Ao mesmo passo que o capacitismo e os preconceitos as negam e as afastam da sexualidade e dos relacionamentos amorosos, os mesmo também têm como consequência a fetichização e o assédio. 

Sarah comenta que já sofreu assédio na universidade, ambientes de lazer e festas e, frequentemente, sofre assédio na Internet. “Por ser uma figura pública, ter uma deficiência, mas, apesar disso, ter um corpo próximo aos padrões de beleza, a nossa cultura retrógrada e machista atrela isso a uma ideia de fetichização e de curiosidade. Então, nas redes sociais, frequentemente recebo comentários invasivos sobre o meu corpo e convites bastante inapropriados.”

Desde que começou a ter acesso às redes sociais, aos 13 anos, Sarah recebe interações dos chamados “devotees”. Devotees são aqueles que se sentem atraídos, seja essa atração de cunho sexual ou não, por pessoas com deficiências. No devoteísmo, há quem possua para além do amor e atração, mas também, ou somente, um fetiche. Ter um fetiche é algo comum a qualquer indivíduo, porém, o problema está quando vira uma fetichização obsessiva e capacitista. Os devotees que se interessam somente na deficiência são vistos por muitos como parafílicos e isso pode afetar negativamente a vida das PcDs. Entre “admiradores” e “atraídos”, existem os que não são dotados de respeito e humanidade: exploradores sexuais, abusadores sexuais, homicidas por parafilia etc. 

“Essa é uma pauta polêmica e que causa algumas discordâncias dentro da comunidade de pessoas com deficiência, pois existem algumas PcDs que não se sentem invadidas com esse tipo de interação. No meu caso, especificamente, eu interpreto como um assédio. Sou contra todo tipo de estereotipação por eu ter uma deficiência e, sexualizar a pessoa com deficiência, olhá-la exclusivamente pela sua diferença física ou intelectual, é uma espécie de estereotipia”, desabafa Sarah.

Há devotees que se transformam em verdadeiros stalkers e perseguem virtualmente mulheres com deficiência, o que também aconteceu com Sarah antes mesmo dela completar 18 anos. Ela explica que, infelizmente, muitas mulheres com deficiência têm a autoestima fragilizada em razão do preconceito e marginalização que sofrem, então, acabam aceitando esse tipo de abordagem. 

Muitas vezes, esses assédios são passados despercebidos pelas mulheres. Cynthia revela que até então nunca tinha parado para rever certas situações e percebido que sofreu assédio. “Quando eu ia em alguns lugares que as pessoas bebem, em festas, lugares onde as pessoas ficam mais à vontade […] não era incomum que me beijassem, talvez um pouco de surpresa”. Ela conta que essas situações não foi o mais gritante, “pois eu nunca tinha parado para pensar nisso até agora”, mas sim quando em um dia desses, ela acessou seu Facebook e viu uma foto sua postada sem autorização em uma página.

Cynthia desabafa: “Ninguém quer ser objetificado, não quero ser uma pessoa de cadeira de rodas para alimentar uma fantasia, sou uma pessoa com minhas singularidades.” Imagem: Acervo Pessoal/ Cynthia Jardim

“Abri a página para ver do que se tratava e tinha apenas fotos de mulheres com deficiência, a maioria de lingerie, algumas ilustrações de uma moça que tinha traqueostomia. Já tinha ouvido falar algumas vezes dos devotees […] mas eu nunca tinha visto assim. Para ser sincera, essa imagem em especial me deixou um pouco impressionada, achei pesado, até denunciei a página, também não queria minha imagem ali. Não é difícil homens me chamarem, principalmente estrangeiros, perguntando sobre minha deficiência, o que aconteceu, como foi…”

As PcDs são comumente infantilizadas, mesmo quando já adultas vivendo com independência e autonomia. Pais, amigos, familiares e as pessoas sem deficiência à volta tendem a agir como se a pessoa com deficiência fosse incapaz ou não pudesse viver sua sexualidade. Nesse contexto, não é nem imaginado ou esperado que uma PcD se relacione romanticamente e/ou sexualmente. 

Muitos são os mitos e tabus acerca das PcDs, construídos em cima de muita desinformação, ideias preconceituosas e limitadas. Essas ideias estigmatizadas reforçam e incentivam relações de dominação e discriminação que podem acontecer entre pessoa sem deficiência e pessoas com deficiência, entre duas PcDs e entre pessoas com deficiências menos comprometedoras sobre as que têm maior comprometimento. Quando absorvidos por uma pessoa com deficiência, esses mitos podem acarretar em um aumento de sentimentos negativos, baixar a autoestima, criar uma sensação de desvalia e coibir que essa pessoa expresse sua sexualidade. Já a assimilação dessas ideias por pessoas sem deficiência acarreta em uma perspectiva ignorante e capacitista de como as PcDs se relacionam afetivamente e sexualmente.  

5 MITOS SOBRE A SEXUALIDADE DAS PCDS:

1- Pessoas com deficiência não conseguem usufruir do “sexo normal”, por isso, são pessoas que têm sempre disfunções sexuais relacionadas ao desejo, à excitação e ao orgasmo;

2- Pessoas com deficiência são hiperssexuadas: seus desejos são incontroláveis e exacerbados. A expressão sexual explícita para quem tem deficiência é uma perversão;

3- Pessoas com deficiência são assexuadas: não têm sentimentos, pensamentos e necessidades sexuais;

4- A reprodução para pessoas com deficiência é sempre problemática porque são estéreis, geram filhos com deficiência e ou não têm condições de cuidar deles;

5- Pessoas com deficiência são pouco atraentes, indesejáveis e incapazes de conquistar um parceiro amoroso e manter um vínculo estável de relacionamento amoroso e sexual.

Pensamentos como estes colocam as deficiências como algo errado, uma falta e/ou impossibilidade de viver a sexualidade e os relacionamentos afetivos normalmente. Essas ideias preconceituosas são consideradas gerais a toda PcD e transformam pessoas singulares em um grupo genérico, levando a compreender a pessoa apenas e somente por sua deficiência. Esses conceitos preconceituosos contemplam a vida social, afetiva e amorosa que envolve os relacionamentos, a autoimagem, estética e atratividade, sedução, desejo, questões de gênero, as práticas sexuais, desempenho sexual funcional e o sexo tido como saudável.

Sarah comenta que percebe que o diálogo sobre a sexualidade das PcDs demora a avançar porque fica no campo das piadinhas, do estranhamento e da fantasia. Desconsiderando que as pessoas com deficiência, assim como as sem, fazem sexo, recebem e dão prazer.

A professora Ana Cláudia acredita ser necessário trabalhar a sexualidade e os relacionamentos interpessoais das PcDs com as próprias pessoas, com seus familiares e com profissionais para que elas possam ter repertório para viver a sexualidade e os relacionamentos amorosos. “Precisamos ter uma sociedade inclusiva, uma educação inclusiva e uma pedagogia inclusiva para que essas mulheres possam exercer os direitos de se relacionar e a sexualidade”.