Clico, logo desisto
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: martinha.duenas@gmail.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
A linguagem nos transforma e as redes têm transformado a linguagem. Adicionamos e deletamos, sem parcimônia. Nos tornamos absolutos, transformamos os outros em obsoletos. Frente à tela temos poder, coragens e opiniões firmes. Lançamos convites e fazemos comentários que, ao vivo, talvez não fizéssemos.
Vamos clicando e assim nos despedindo das nossas habilidades sociais. Alguns nem precisam mais delas já que recriamos nossa comunidade e ela, agora, é deletável. Sons de notificação dão conta das novidades que chegam visuais, mas silenciosas. A comunicação em rede não tem voz e as relações vão perdendo o tom.
As interações vão ao limite do que nos interessa. A rede nem sempre nos amplia, ela às vezes nos blinda do que não queremos ver e nos conecta aos que são palatáveis. Digitalizamos nossos clubes. O diferente, mesmo na era da empatia, não nos interessa, espiamos sem interação. Vemos sem perceber e nesse passar de dedo vamos reduzindo nossa capacidade social às conexões em rede. Porque é aí que somos todos celebráveis. Não há muito o que descortinar, queremos que nos vejam em flashes e vamos nos mostrando em posts. Nada muito profundo porque no decorrer da intensidade vamos deixando de ser tão interessantes.
O abuso de redes tem nos plastificado, não só metaforicamente, fisicamente vamos nos filtrando também, buscando não só os melhores ângulos como recriando os formatos dos nossos rostos. Essa plasticidade não só é doentia do ponto de vista físico como é adoecedora do âmbito da cognição. O excesso de redes e de telas não só tem nos resumido naquilo que entra no quadradinho do visor, como nos tira perspectivas mais complexas da vida, dos desafios, das competências e competições e, fundamentalmente, das relações. A tela, paradoxalmente ao mundo de possibilidades que abre por meio da exploração virtual, planifica algumas dimensões que são imprescindíveis ao desenvolvimento cerebral, e é por isso que crianças precisam reduzir ou não usar equipamentos eletrônicos na primeira infância e certamente nós, como adultos pensantes, temos que reduzir nosso tempo de aparelhos.
Estudos têm demonstrado, inclusive, que o cérebro tem sido afetado pelo nosso comportamento social de constante uso de telas. Quem traz esse alerta é o Professor Dr Miguel Nicolelis. Em entrevista, ele afirma que as crianças podem estar perdendo atributos analógicos cognitivos de alta complexidade. E ele avança contando que esteve na Finlândia, onde há o sistema educacional mais celebrado do mundo e que por lá as escolas públicas estão banindo computadores e proibindo celulares em sala de aula. A ideia agora é que estudantes voltem a resolver questões de matemática ou outras disciplinas no velho estilo caligráfico com lápis e papel. Essa prática permite que cérebro e corpo façam atividades, solucionem questões e se movimentam com impulsos diferentes. Na tela, muitas soluções são homogeneizadas. Até mesmo a escrita, por ter um “teclar” e um parâmetro de fontes, muda o ritmo da produção textual. Segundo o cientista, os estudos apresentados na Finlândia dão conta de que o uso abusivo de telas pode comprimir a diversidade intelectual.
Tal qual as redes com seus filtros, internamente, vamos perdendo o que é mais importante como a singularidade.
Os impactos da vida frente à tela são tão complexos que vão desde os conteúdos aos quais temos nos submetido mesmo que por flashes até mesmo à deformação bioquímica cerebral.
O abandono dos livros e periódicos físicos não só trouxe uma mudança no campo do formato mas também no conteúdo. É bem evidente que nossa linguagem, que é viva, se adapta em verbetes digitais e na fluidez necessária para estes novos tempos. E mais profundamente, vamos deglutindo personagens que antes, ainda que houvessem, não tinham tamanha audiência como coachs que propõem desafios e insensatezes que beiram a crueldade com seus seguidores. O termo seguidor já é uma novidade, digamos assim.
A tecnologia impacta também nossas subjetividades. Estamos voltados ao EU e, portanto, implorando que olhem nossas intimidades, talvez deformando esses momentos tornando-os publicáveis. Vamos nos tornando audiência e modificando aquilo que consideramos relevante ou até mesmo fontes. Estamos colocando nossa própria história no centro do nosso olhar e isso não é apenas uma questão egóica, passa a dar um novo formato às configurações sociais. O cancelamento, a eliminação virtual, é uma forma de aniquilar um sujeito, que incide sobre possibilidades de olhar e até mesmo de trabalhar relações em rede.
Não é novidade que crimes e atentados à humanidade encontram ambiente fértil e seguro nas redes sociais. Já produzimos conteúdos sobre isso, mas agora temos que olhar para além do que se trama nas redes. Considerar que o físico das redes, ou sejam as telas, são suficientemente nocivas e merecem ser objeto de alerta de estudiosos e da ciência.
A rede nos afasta e ainda assim a gente se sente perto até que ficamos somente com nosso reflexo, nossas próprias caras e selfies e nossos pratos de comida em qualquer restaurante bacana. Ego gordo, alma desnutrida e agora cérebro deformado.