Por Vivian Jorge, jornalista – RS 
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista  
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista 

Pela primeira vez na história cervejeira, 2020 registrou a abertura de ao menos uma cervejaria em todos os estados brasileiros

Nosso país é muito rico em recursos naturais. Somos privilegiados com o solo, clima, florestas, águas etc. Produzimos matéria prima de qualidade, uma pena que exista tanta exploração indevida. Ano passado, mesmo com as dificuldades da pandemia em que ainda vivemos, o Brasil cresceu cerca de 15% no mercado cervejeiro. É por isso que, hoje, a pauta traz os segredos da cerveja artesanal, os empreendimentos e ascensão dessa cultura gourmet no país. Agora, anota aí: água, lúpulo, malte, criatividade, estudos, sabor e persistência.

Parece fácil, mas não é! Dizem que com o passar dos anos nosso paladar fica mais exigente, refinado. Conheço muitas pessoas que preferem cervejas e chopes artesanais por seus diferentes tons e amoras. Em 2019, fiz uma viagem para Goiás, onde tive a oportunidade de experimentar uma cerveja artesanal de bergamota com raspas de limão, confesso que não era muito fã de cerveja. Para minha surpresa, adorei! Desde então, quando consumo, procuro experimentar as artesanais e suas experiências gastronômicas que o sabor nos traz.

Mas o que realmente é uma cerveja artesanal?

“Acredito que o artesanal deve estar associado a um criador, isto é, deve ter a alma do cervejeiro e este estar associado ao seu produto. Desde a criação da receita até o processo produtivo e quem sabe na degustação”, pondera o mestre-cervejeiro Denys Souto.

Apesar de existir vários conceitos, as cervejarias “ciganas” ou cervejarias artesanais são empresas legalmente constituídas, que possuem ou não uma estrutura produtiva própria. Muitas são fabricadas em menor escala, em microcervejarias, em casa ou terceirizadas. Porém, só podem ser comercializadas as bebidas produzidas em estabelecimentos registrados no MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento).

A base da cerveja artesanal é composta por apenas quatro ingredientes: lúpulo, malte, água e levedura.

Foto: Reprodução/Madson André Silva do Vale

Madson André Silva do Vale, de 42 anos, é major da Artilharia do Exército e cervejeiro, ele quem foi o responsável pela produção da cerveja artesanal de bergamota. Do Vale conta que começou a se interessar por cervejas artesanais em 1997, mas só 10 anos depois que decidiu produzir sua própria cerveja. Em 2017, frequentou a Escola Superior de Cerveja e Malte, localizada em Santa Catarina (SC). Depois, na mesma academia, fez um curso de Tecnologia Cervejeira Avançada. “Hoje a BeerBrow é feita em casa, em Praia Grande (SP). Pretendo lança-la ano que vem, por enquanto está em fase de testes, estudos e degustação dos amigos mais próximos. Minha produção, no momento, é feita em 3 panelas, sendo uma utilizada para água de lavagem, outra para brasagem e a última para fervura. Temos 3 geladeiras e um Freezer, que usamos para fermentar as cervejas, além de um barril de 150 litros que uso bem raramente para cervejas usando leveduras Kveik. As panelas são ligadas por mangueiras de silicone e uma bomba de inox mantém o fluxo dos líquidos entre elas. Tudo muito simples, mas com muito esmero, controle da higiene e sanitização. A preocupação principalmente é uma cerveja de qualidade, que nos dê orgulho e que seja digna de ser chamada de nossa”, conta.

Para Madson, fazer uma cerveja não é difícil, mas uma cerveja de qualidade e excelência precisa de muito estudo e prática. “Quem entra para o mundo das artesanais passa a conhecer um outro lado da vida, falo isso de coração. Eu não me vejo mais sem isso. O processo caseiro não é difícil, mas precisa dedicação e conhecimento. Se você, realmente, ama cerveja, estude muito e dedique- se, pois não é difícil fazer uma cerveja boa, mas fazer cerveja muito boa, isso sim é muito difícil”.

Foto: Reprodução Anuário da Cerveja 2020

A cerveja é a bebida alcoólica mais popular entre os brasileiros e, nisso, o estado catarinense é um berço cervejeiro. De acordo com o Anuário da Cerveja 2020, as regiões Sul estão em primeiro lugar na densidade de cervejarias por habitantes. O estado de Santa Catarina, por exemplo, ocupa o primeiro lugar com 41.443 habitantes por cervejaria registrada. O Rio Grande do Sul (RS) também contabiliza nove municípios com maior densidade de cervejaria por habitantes registrados no Mapa.

Apesar dos registros de cervejas artesanais no Brasil aparecer no séc XIX, como uma atividade culinária doméstica regida por mulheres, sua força foi visivelmente conquistada em meados dos anos 2000, quando muitas microcervejarias surgem.

Cervejaria Coruja

Foto: Divulgação/Cervejaria Coruja

Uma das mais tradicionais no Sul do país é a Coruja, uma das primeiras marcas, também, a levantar a bandeira artesanal. Conversamos com a Iris Maurilio, de 28 anos, gestora de Branding da Cervejaria Coruja, fundada em 2004 pelos amigos Rafael Rodrigues e Micael Eckert.  “Na época, pouco se falava em cerveja artesanal, então se tratava de um negócio inovador, especialmente pela forma irreverente como a marca Coruja se posicionava”, explica. O formato das garrafas escolhidas também chamava a atenção dos consumidores, bem como o nome escolhido por ser um animal associado à sabedoria.

Em 2014, a marca começou a fazer parte do portfólio da Cervejaria Santa Catarina, juntamente com Saint Bier, Barco e Catarina. Ela explica que o cuidado e a atenção aos detalhes no processo produtivo e na seleção dos ingredientes é o diferencial para o sucesso da Coruja. Hoje, a fábrica está situada na cidade de Forquilhinha (SC) e possuí diversos canais de venda, de distribuição direta a terceirizada, representantes, consultores de cervejas e e-commerce, facilitando a adesão e consumo nacional.

Iris nos explica que existam cerca de 150 estilos de cervejas em todo o mundo e que o mais legal da cerveja artesanal é que, com apenas os 4 ingredientes básicos é possível criar uma grande variedade de aromas e sabores. “Acredito que o consumidor tem se tornado cada vez mais exigente com relação ao que consome e se interessa, cada vez mais, pelos ingredientes e processos de fabricação dos alimentos e bebidas. Além disso, a ampla variedade de sabores oferecidos pela cerveja artesanal tem conquistado cada vez mais público, que se surpreende com a experiência e se torna adepto da bebida”, observa a gestora.

A Coruja também possui diversas premiações no portfólio. A mais recente foi no Concurso Brasileiro de Cervejas de 2021, em que ganharam a medalha de ouro com a Coruja Weizen.

Nessa tendência de concentração de cervejarias nas regiões Sul e Sudeste, o ano de 2020 contabilizou mais de 85% dos estabelecimentos registrados. Em Porto Alegre, conhecemos duas cervejarias: a Implicantes e a DaLuz.

Cervejaria DaLuz

Foto: Reprodução/Amora Imagem/Taty Larrubia

A Cervejaria DaLuz fica na zona norte da capital, foi criada a partir de um hobby na família após um curso de como fazer cerveja. Hoje, o empreendimento tem três sócios: Michelle Vieceli, tecnóloga e sommelier de cervejas, responsável pela elaboração e produção das cervejas; Mariela Morande, responsável pelo marketing, administração e relacionamento com clientes; e Paulo César da Silva, responsável pela produção, envase e por manter a fábrica dentro dos padrões exigidos pela legislação. “Após eu fazer o curso de tecnologia avançada cervejeira, resolvemos investir mais a fundo e trabalhar dentro de uma fábrica. Iniciamos numa planta compartilhada com mais duas cervejarias, ficamos dois anos nesse espaço. Em março de 2020, resolvemos abrir nossa própria planta e, assim, incorporamos mais uma sócia que investiu para que isso fosse possível”, relata Michelle.

Para a sommelier, a cerveja artesanal é como uma arte, a criação de um produto de forma manual em pequena escala. “A cada leva e produto que é lançado, proporcionamos diferentes experiências para as pessoas.  Principalmente, a variedade de estilos e sabores que trazem prazer na hora de degustar o produto”, diz.

Formada também em nutrição, Michelle fala um pouco sobre a harmonização de pratos com as cervejas DaLuz. “Nós gostamos de cozinhar com cerveja e dividimos isso com nosso público nas nossas redes. Já fizemos barrinha de chocolate com Dry Stout, picolé de morango com nossa Ipa, salada de tabule com Pilsen, pipoca doce e brownie  com Dry Stout. Todas testadas e aprovadas”, lembra.

Harmonização e a cultura gourmet

De forma geral, as cervejas podem acentuar ou amenizar o paladar, diz a chef Verônica Maidana, principalmente, as artesanais que podem ter aromas e sabores variados. Você pode tanto harmonizar com um alimento, escolhendo a melhor bebida para combinar com seu prato, quanto usá-la para cozinhar, por exemplo. “A técnica de harmonização deve, basicamente, ‘combinar’ com os alimentos do prato para que sua degustação traga uma melhor experiência gastronômica. Procure similaridades e equilíbrio”, aponta.

Foto: Reprodução/Unsplash

As cervejas fortes, por exemplo, combinam com pratos intensos, como carnes, hambúrguer etc. Cervejas mais leves podem ser harmonizadas com saladas, petiscos etc. As frutadas também podem ser harmonizadas com aves, queijos, peixes, entre outros.

Lembre-se: há duas formas de combinar aromas e sabores: uma é buscando elementos da cerveja parecidos com os do alimento; a outra é se perguntando que sabor você quer dar ao seu alimento. Aqui você pode incrementar ou atenuar o sabor do seu alimento com a cerveja. Mas, poderíamos sugerir um terceiro elemento: quando a textura do prato se choca com o aroma e o sabor criando um terceiro sabor.

Em via de regras, a dica aqui é experimentar e ousar.

A bebida artesanal, além da produção em menor escala, normalmente tem menor uso de conservantes e aditivos que são usados nas grandes indústrias, esses diferentes aromas e sabores são, de certa forma, mais fáceis de serem administrados. Madson por exemplo, atualmente está produzindo e testando uma cerveja Brut com pitaya e morango. “Hoje busco cervejas com fermentação mista e com leveduras selvagens, cervejas belgas e cervejas ácidas. Cervejas que ressaltam a memória gustativa, que remete a infância, nos aromas e sabores das frutas e dos doces”, falou.

No entanto, o Rio Grande do Sul acabou se formando um polo cervejeiro, efeito disso também da cultura gourmet, dos empreendimentos e do grande polo gastronômico do estado. “Acredito que isso está muito ligado à possibilidade da produção de um produto com qualidade e termos acesso com facilidade às técnicas e aos insumos. O prazer de produzir uma cerveja e poder compartilhar isso com outras pessoas mexe com o interior das pessoas. É um universo lindo, com muito conteúdo, que a cada dia queremos saber e se envolver mais”, finaliza a sócia da DaLuz.

Um dos diferenciais dessa cultura gourmet é que na cerveja artesanal existem outras opções que não sejam apenas Pilsen. Alguns estilos de cerveja permitem a adição de frutas, ervas, entre outras opções. “A possibilidade de criação é imensa, basta o Mestre-Cervejeiro ter criatividade e não ter medo de errar”, observa Diego sócio proprietário da Implicantes.

Cervejaria Implicantes: primeira fábrica cervejeira negra do Brasil

Diego Dias, de 34 anos, é designer gráfico e responsável pelo marketing da Cervejaria Implicantes. Por apreciar diversas cervejas, Diego e o irmão Daniel sempre tiveram curiosidade de como produzi-las. Um dia resolveram se aventurar e compraram panelas para fazer cerveja em casa. Após diversas tentativas, começaram a ter ótimas cervejas, motivando-os a tornar o hobby em um negócio. “Eu e meu irmão frequentamos diversos eventos cervejeiros e éramos os únicos negros no local, e notamos a tentativa de representatividade por parte das cervejarias em homenagear o negro. Porém, isto era feito de forma caricata, usando termos pejorativos e sempre nos relacionando a uma cerveja escura. Frustrados com essa situação, fizemos um plano de negócio e adquirimos uma fábrica que estava à venda no bairro cervejeiro de Porto Alegre. Assim, nasceu a IMPLICANTES, a 1ª fábrica cervejeira negra do Brasil, tendo em seu DNA a representatividade de maneira assertiva”, revela.

Foto: Divulgação/Cervejaria Implicantes

Além dos irmãos, a cervejaria conta com outro sócio, o Thiago Rosário, que se integrou no quadro um ano depois da fundação da cervejaria. Diego fala que o que diferencia a cerveja artesanal é que as demais possuem rápido processo de fermentação e maturação, geralmente obtendo esse resultado através de produtos químicos para acelerar o tempo da produção. Outra diferença das demais cervejas é a utilização demasiada de adjuntos cervejeiros (milho, arroz etc), cereais não maltados, além de carboidratos, antioxidantes e estabilizantes.

Com a qualidade e representatividade como diferencial, sempre ao lançar uma nova receita, os sócios fazem uma pesquisa sobre personalidades negras que foram esquecidas ou embranquecidas nos livros de história. “A Implicantes também aborda questionamentos sobre o racismo estrutural que está enraizado em nossa sociedade”. Após a seleção de possíveis temáticas, há uma nova pesquisa com o público para saber qual rótulo combina com aquele estilo de cerveja. As ilustrações são feitas pelo próprio Diego, que acabou criando um estilo próprio de ilustração para a Implicantes.

Com fábrica também em Porto Alegre, a Implicantes atende lojas, bares e restaurantes em diversas cidades do país, e loja virtual.

Também denominada “cerveja gourmet”, a bebida artesanal em alta abriu o leque para que muitas pessoas experimentem novos produtos em busca de qualidade, um bom gosto e sabor. “Acredito que o brasileiro está mais aberto a novas experiências, por essa razão criou uma curiosidade para a cerveja artesanal. A partir do momento em que experimenta novos estilos e nota que cerveja não se resume em Pilsen, tem a vontade de provar cada vez mais novidades”, pontua Diego.

Neste contexto, o designer nos traz uma lista de cervejas artesanais, as quais as famílias mais conhecidas hoje em dia são as LAGERS e as ALES. A menos conhecida é a LAMBIC. Lagers são cervejas que fermentam em baixa temperatura e seus estilos são Pilsen, Pale Lager, Bock, Vienna Lager, Münich Helles, entre outras.

Dicas para harmonização (depende do estilo da cerveja): carnes, frutos do mar, folhas verdes, chocolates, queijos, petiscos, castanhas ou amendoins etc.

Ales são cervejas que fermentam em alta temperatura e seus estilos são IPA, APA, Brown Ale, Saison, Stout, Dubbel, entre outras. Lambics são cervejas selvagens, ou seja, são fermentadas espontaneamente e seus estilos mais conhecidos são Geuze, Fruit Lambic (Kriek e Framboise) e Faro.

Dicas para harmonização (depende do estilo da cerveja): churrasco, pizza, hambúrguer, sobremesas, chocolates, queijo gorgonzola, peixes recheados, culinária oriental etc.

Entre cursos para aprimoramentos de técnicas cervejeiras, os proprietários da Implicantes acreditam que é muito importante continuar estudando, pois novos estilos cervejeiros estão sendo criados a partir de novas técnicas.

E a diferença de cerveja e chope? Cerveja e chope, na teoria, é a mesma coisa. “Schoppe é uma medida de meio litro a qual os alemães pediam nos bares. O termo se popularizou de outra forma no Brasil, se referindo a cervejas não pasteurizadas servidas do barril. Já as cervejas, nessa perspectiva, são as latas e garrafas de cervejas pasteurizadas que encontramos nas gôndolas do mercado, não apresentando tanto frescor igual ao encontrado no chopp”, explica Dias.

 Zagaia Brewery

Foto: Divulgação/Facebook Zagaia

Buscando fontes no interior do Rio Grande do Sul, conhecemos o Denys Souto Coelho, de 53 anos, empresário e proprietário da Zagaia Brewery. Mestre-cervejeiro, entusiasta de cervejas e quase um autodidata, conheceu a cerveja artesanal em uma viagem a Buenos Aires, capital Argentina, no ano de 2005, onde degustou uma Pale Ale. Em 2007, em um grupo de amigos, surgiu a ideia de produzir cerveja artesanal. Logo, comprou inúmeros livros, começou a frequentar eventos cervejeiros pelo o mundo e se tornou um homebrewer (cervejeiro caseiro). “Um dos efeitos colaterais da paixão pela cerveja é a busca por novos sabores, aromas e experiências, o que inevitavelmente resulta em viagens”, comenta.

Já em 2015, participou da abertura de um empreendimento em Santa Maria (Growler House) e passou a construir a cervejaria. De lá para cá festivais cervejeiros e conhecimento, não faltaram.

Hoje, a fábrica fica em Itaara, a 16km de Santa Maria, e dispõe de uma adega para 9000 litros (fermentação e maturação), atendendo o mercado de Santa Maria. São mais de 46 receitas registradas e normalmente 12 estilos diferentes em produção.

Para ele, fabricar cerveja artesanal requer cuidado na produção, pois os processos evoluem, uma característica das artesanais, sendo assim a busca pela inovação. “Faço do tema o meu foco de interesse pessoal, fazendo viagens e participando de eventos na descoberta de sabores e aromas. Gosto de participar de um segmento que ‘está acontecendo’. A cerveja artesanal está em constante evolução”, conclui Dennys.

A Zagaia também já ganhou medalha de bronze em uma categoria do Concurso brasileiro de Cervejas, em 2018.