Cabelo sendo puxado do ralo
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Faz tempo que a fossa presidencial cheirava mal. Acabou a gestão de Bolsonaro e o ralo continuou enchendo a ponto de quase entupir. Foi quando, por conta das investigações sobre milícias digitais, se descobre um esquema de mentira e falsificação envolvendo vacinação, SUS e estruturas públicas governamentais. Estão puxando um cabelo do ralo e é capaz de sair uma (ou mais) cabeças desse buraco. E assim espero.
A quebra do sigilo telemático do celular de Cid, ajudante de Ordens do ex-presidente Bolsonaro, determinado ainda em 2021 no inquérito sobre um ataque hacker ao TSE, é o desentupidor desses canos revelando o esquema de falsificação de carteira vacinal de membros do governo, suas famílias e até mesmo do ex-presidente e sua família, expondo, também, negociatas e trocas de favores. A resistência à vacinação era tão grande que, para se conseguir falsificar esse documento, chega-se, segundo diálogos desse celular, negociar com político investigado pelas mortes de Marielle e Anderson.
No início de maio, 16 pessoas foram alvo de ações da Polícia Federal. O protagonista desse filme de terror é Mauro Cid, o operador do esquema que, ao que tudo indica, são esquemas. Mas também aparecem outros militares e funcionários ligados a ele. Desse total, na época, seis pessoas foram presas incluindo Mauro Cid, de confiança direta do ex-presidente.
Coisas ditas e escritas por Cid podem dar uma fotografia do complexo dia a dia do gabinete do ex-presidente e no que se refere a crimes, a carteira (que não é de vacinação) está bem completa: são pelo menos três linhas de acusação que vai de falsificação de registro de vacina, desvio de verbas públicas e preparação de atos golpistas. Tem, também, o esquema das joias supostamente dadas de presente a Jair e Michele. Um combo.
Mauro Cid, como diz seu cargo, ajudante de ordens, ajudou muito a família Bolsonaro. E continua ajudando, já que, embora aceitasse negociar ilegalidades, não topou um esquema de delação premiada, portanto, a investigação segue em curso.
Sobre as vacinas, fraude aparentemente arquitetada por Cid, levam a crer que o próprio ajudante de ordens e sua família utilizaram documentos falsos, assim como de Bolsonaro e sua família. De acordo com as investigações, num esquema de urgência, diversos aliados políticos e funcionários públicos foram contatados para que documentos fossem produzidos fraudando datas, doses e lotes de vacina. Não me surpreende que depois de diversas investidas, o ato criminoso se concretiza em Duque de Caixas, RJ, com apoio de outros militares, vereador e profissionais de saúde. Nada é por acaso.
Pessoas do entorno muito próximo do ex-presidente se beneficiaram desse esquema também. A partir dessas informações, foram encontrados vários rastros tão assustadores quanto esse. Somente no enredo do esquema do cartão: as possíveis crimes vão de adulteração e fraude documental a aliciamento de menores e associação criminosa.
São muitas inconsistências acobertadas pela sistemática falta de transparência e comunicação da antiga gestão. Uma simples carteira de vacina revela um esquema nacional com favores, corrupção e mentiras para que o ex-presidente e sua família pudessem fugir, digo, viajar aos Estados Unidos no final do ano passado, ainda enquanto Presidente, embora já derrotado nas urnas.
Desde a quebra telemática, que não se restringe ao celular e inclui e-mails, aplicativos, acesso a informações salvas em nuvem, a PF tem encontrado diversas evidências de crimes. A falsificação de carteiras de vacina é apenas uma delas.
As mensagens reveladas no celular de Cid mostram que não havia o menor cuidado em apagar rastros ou esconder outros temas correlatos. Não sei se por pressa ou certeza de impunidade, mas sei que por convicção. Esse grupo é convicto de que essa é a maneira de viver, agir e legislar.
Com relação às vacinas, que me chamam muito atenção já que ainda tem quem considere algo pequeno, havia uma suposta negociação gravíssima. Em bom português, o que estava em questão seria conseguir uma carteira de vacinação dando em pagamento uma ajuda junto à diplomacia estadunidense a fim de conseguir visto de entrada aos EUA por parte de um político impedido de viajar por figurar numa investigação de assassinato. Uma moeda de troca nada simples, nem pequena.
Nessa conversa, outro investigado diz saber todo o esquema do assassinato de Marielle, o crime em questão, justificando que o vereador Siciliano, esse que pede uma ajuda para um visto, teria entrado de gaiato, ou seja, sabe-se quem de fato está envolvido nesse crime que chocou o país.
Esse compadrio cujos presentes custaram vidas, é parte das relações políticas desse governo que foi terminado pela via democrática.
O fio está travado no ralo, mas a cada conversa revelada, mais e mais se pode saber e, por isso, o Ministro Alexandre de Moraes tem enfrentado críticas para continuar autorizando quebras de sigilo. É um castelo de cartas que leva a uma série de crimes que podem até parecer desconexo, mas fazem parte de uma trama real.
Na nuvem de Cid, ironicamente, são encontrados boletos e cartões pagos com dinheiro do governo, recibos de plano de saúde da família da ex-primeira-dama, indícios vigorosos de desvio de dinheiro público.
Nesse lio, não sei o que me choca mais. Mas sem duvida, é estarrecedor um presidente falsificar informações, ainda mais as ligadas à saúde pública. Pessoas como ele que tem cartões de vacina que ainda não sabemos se são reais ou não colocam no lixo toda estratégia de saúde que é coletiva e é para uma nação. Pessoas que negam vacinação colocam em risco todas as outras. Se por ventura ele tenha tomado a vacina, grife-se que o fez por respeito e temor aos Estados Unidos enquanto faz uma banana para o país que, infelizmente, governou.
O celular de Cid não revelou um esquema, revelou um método. O que as investigações em curso podem mostrar até o momento é uma posição frente à vida e à democracia. O ex-presidente e sua corja não só falsificaram um cartão, falsificaram um governo na tentativa de fraudar uma nação. A crueldade exposta no método de fazer política são vis e patéticos em igual escala. Fazem com pressa, deixando todas as pistas a mostra. Isso beira o desrespeito como se já não fosse crime. Isso demonstra o destemor com a lei, na certeza de que não seriam punidos ou ainda, não perderiam eleições, pois o esquema para fraudar o pleito já estava em campo.
As investigações seguem em curso. São questões criminais e eleitorais.
O cerco político de Bolsonaro está se fechando, mas o ralo ainda está fedendo.