Brinquedos, estereótipos de gênero e desenvolvimento infantil
Por Bruna Fonseca
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Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, Jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, Jornalista
Editora de conteúdo – Site MJ: Beatriz Azevedo, Jornalista
As divisões de brinquedos por gênero parecem estar se tornando cada vez mais aprofundadas. Empresas como a LEGO declaram estar comprometidas com a eliminação dessas diferenciações
No dia 11 de outubro deste ano, foi anunciado que a empresa dinamarquesa LEGO, a maior fabricante de brinquedos do mundo, estaria comprometida a acabar com as divisões por gênero de seus produtos. Com a missão de ajudar a reduzir os estereótipos atribuídos a meninas e meninos e tornar, assim, seus brinquedos mais neutros nesse sentido, a marca decidiu eliminar a separação por gênero de seus famosos conjuntos de blocos em seu website.
Conhecido mundialmente por ser um dos brinquedos que mais estimula o desenvolvimento infantil, LEGOs tendem a encorajar a criatividade e a imaginação, bem como promover o estímulo da memória espacial, da atenção e do foco em crianças. Ao proporcionar uma experiência diretamente ligada à construção, ao pensamento ativo e ao design, os produtos da marca dão espaço para o desenvolvimento de habilidades motoras, matemáticas, organizacionais, solução de problemas e assim por diante. Pesquisas demonstram, inclusive, que o contato na infância com brinquedos relacionados à construção e ao uso de peças montáveis, como LEGO, pode estar ligado com o futuro interesse em áreas relativas a Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática.
Justamente por isso, é uma pena que meninas tenham sido deixadas de lado de campanhas publicitárias da marca por décadas. Surgida em 1949, a empresa nasce com uma proposta universalista, comercializando e direcionando seus produtos para todas as crianças, a fim de promover uma experiência focada na construção, cooperação e imaginação. Ao longo das décadas de 1950 e 1960, a experiência LEGO passa a ser comercializada de maneira a incluir toda a família, num exercício que parecia visar de fato a convergência de gêneros, idades, experiências e interesses.
Divisões crescentes
Aos poucos, a marca passa a direcionar cada vez mais sua estratégia de marketing exclusivamente para meninos, panorama que atinge seu ápice do período que compreende o final da década de 1990 até a recente década de 2010. Focando-se em brinquedos que tinham como preocupação não tanto a construção e a cooperação e mais o combate e a competição, a LEGO passa a codificar seus brinquedos como exclusivos para meninos em suas campanhas publicitárias. Esse panorama parece se encaixar dentro da tendência crescente de segregação por gêneros dentre brinquedos que tem se intensificado desde a segunda metade do século XX. Através dessa separação estática e rígida que identificava os brinquedos da marca como “para meninos”, o mercado infantil feminino da empresa diminuiu consideravelmente ao longo das décadas.
Para buscar uma solução para esse problema, em 2012, a LEGO alegou ter destinado 4 anos de pesquisa intensa a esse mercado e investido mais de 40 milhões de dólares na promoção de seus brinquedos para garotas do mundo inteiro. Segundo a empresa, eles estariam comprometidos com a expansão da experiência LEGO de forma a incluir meninas. O Chefe de Marketing da marca, Mads Nipper, disse ao site de notícias Bloomberg à época: “Estamos determinados a encontrar uma experiência LEGO fantástica para meninas. Somos apaixonados pela experiência que a marca providencia para crianças ao redor do mundo, em termos de seu desenvolvimento, sua habilidade de concentração. Não é aceitável que nós não consigamos criar um produto que seja atraente para garotas”.
Como resultado, a marca lança, ainda em 2012, o conjunto LEGO Friends. Focando-se mais na experiência de encenação (ou “role play”, em inglês) do que de fato na de construção, o conjunto vinha acompanhado de um set de mini bonecas que viviam na cidade fictícia de Heartlake City. Os conjuntos centravam-se ao redor das casas das bonecas, do café da cidade e do salão de beleza. Já na época, os produtos foram recebidos com controvérsia, acusados por alguns de reforçar estereótipos de gênero. Das embalagens aos tijolos em si, tudo era coberto nas cores rosa e roxo, de maneira a codificar e delimitar o produto como algo apenas “para meninas”. Suas personagens desempenhavam ações relacionadas apenas a atividades de lazer, como ir a festas, assar bolos, cuidar dos cabelos, brincar com pets e “relaxar com as amigas”. É claro que não há nada de errado com esses elementos e com a construção de um mundo fictício em que as crianças brincam de se divertir, envoltas em atividades mais leves. O que gerou estranheza à época foi o fato de como a única experiência LEGO focada fortemente nesses elementos era justamente LEGO Friends, conjunto que tinha como público-alvo exclusivamente garotas com mais de 5 anos.
A proposta do produto parecia fugir por completo do que a empresa vinha até então proporcionando a seus consumidores, com experiências destinadas mais ao estímulo de habilidades motoras e à construção, seu elemento mais marcante. No caso dos outros cenários de encenação, mantinha-se como foco a realização de atividades mais propensas ao risco e à aventura: na LEGO City, cidade original do universo LEGO, os bonecos desempenham funções que vão de bombeiros e controladores de trânsito a engenheiros e técnicos de estações espaciais. De fato, o tipo de experiência que a marca parecia querer proporcionar exclusivamente para seu mercado infantil masculino nas últimas décadas estava muito mais centrada no estímulo ao pensamento ativo e na exploração de uma prática construtiva, permeada por uma gama de opções de funções e atividades.
Dessa forma, parece que a solução encontrada pela marca em 2012 foi mais no sentido de ajudar a reforçar uma experiência dicotômica entre meninos e meninas, baseando-se na visão estereotípica do que se entende por “algo que meninas gostariam”. Em nota oficial à época do lançamento do produto, o CEO da LEGO, Jørgen Vig Knudstorp, declarou: “nós nos focamos em criar uma experiência centrada da alegria da criação, ao mesmo tempo em nos atentamos para a maneira através da qual meninas naturalmente constroem e brincam”. LEGO Friends foi comercializado como o primeiro conjunto 100% construído para refletir os interesses e gostos de meninas.
Uma pesquisa conduzida pela professora de psicologia Judith Elaine Blakemore, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, se propôs a investigar as formas como os papéis de gênero são construídos durante a infância. Para isso, foram avaliados mais de cem brinquedos diferentes. Depois, os brinquedos foram categorizados em seis classes, sendo elas: 1 – altamente femininos, 2 – moderadamente femininos, 3 e 4 – neutros, 5 – moderadamente masculinos, e 6 – altamente masculinos. Ademais, os brinquedos foram avaliados de acordo com quão manipuláveis, estimulantes, educacionais, agressivos e musicais eram. Os resultados estão longe de serem surpreendentes. Os pesquisadores concluíram que brinquedos femininos estavam mais associados com a ênfase na atratividade física, no cuidado e em habilidades domésticas, ao que brinquedos masculinos foram mais identificados como violentos, competitivos, emocionantes e um tanto perigosos. Ainda segundo o estudo, os brinquedos que foram avaliados como os mais educativos e mais propensos a desenvolverem habilidades físicas, cognitivas e artísticas em crianças foram aqueles categorizados como neutros e moderadamente masculinos.
Segundo a Prof. Blakemore, em entrevista concedida à organização americana National Association for the Education of Young Children, “nós concluímos que brinquedos altamente femininos ou masculinos parecem ser menos propensos a proporcionar o desenvolvimento ideal infantil, em comparação a brinquedos neutros ou moderadamente associados a um gênero”. Quando perguntada sobre o que educadores infantis poderiam aprender com sua pesquisa, a prof. Blakemore conclui que “se você quer desenvolver destreza física, cognitiva, acadêmica, musical e artística em crianças, brinquedos que não são altamente associados a um só gênero são mais propensos a fazer isso”.
Não é preciso ler estudos, entretanto, para chegar a conclusões sobre como a categorização de brinquedos entre exclusivamente masculinos ou femininos tem permeado cada vez mais o cenário infantil. Se para garotas, a ênfase parece estar envolta em habilidades domésticas, no cuidar e na aparência física, para garotos, o foco é na violência e competitividade (armas, lutas e agressão). Essa divisão rígida pode levar crianças a entenderem as categorias “menino” e “menina” como classes muito distantes, quase que de espécies distintas. Além disso, essa divisão rígida e desproporcional encerra diversas possibilidades para ambos os sexos, de maneira que pode levar meninas a acreditarem que o foco na aparência deve ser a coisa mais importante em suas vidas, e fazer meninos entenderem a agressividade como o principal meio para a resolução de conflitos mais tarde na vida adulta. A verdade é que ambos os extremos desse espectro possuem qualidades que devem ser incorporadas por todas as crianças: habilidades espaciais e de construção não deveriam ser deixadas de fora das brincadeiras das meninas, da mesma forma que aprender a cuidar e colaborar deve estar presente no universo masculino infantil. Sendo assim, apostar em brinquedos que não carregam tão fortemente estereótipos de gênero pode ser mais recomendável para encorajar o desenvolvimento completo dos pequenos.
Ainda segundo a prof. Blakemore, um dos dados mais chocantes do estudo, a seu ver, é o fato de que brinquedos moderadamente masculinos desenvolvem habilidades físicas, cognitivas e acadêmicas muito mais do que os moderadamente femininos.
Um caso notável tem sido o daquela que é a maior rede de fast-food do mundo, o restaurante McDonald’s. Se até os anos 1990 o conjunto promocional McLanche Feliz, combo de lanche acompanhado de um brinquedo destinado às crianças, não fazia distinção de gênero, ao longo dos últimos anos o panorama tem sido bem diferente. Agora, a cada mês, o restaurante oferece dois tipos de surpresa: uma “para meninos” e outra “para meninas”. Uma pesquisa recente da California State University investigou a linguagem utilizada nas instruções oferecidas nos brinquedos “femininos” em contraste com os “masculinos”. A professora de sociologia Kristen Discola coletou todas as surpresas contidas nos McLanches Felizes distribuídos nos Estados Unidos de 2011 a 2019, com o intuito de investigar primordialmente as caixas em que se apresentavam os direcionamentos para montar ou manipular cada brinquedo.
Os resultados são preocupantes. Enquanto nas instruções destinadas aos brinquedos “de meninos” se encontravam direcionamentos como “mire alto”, “conquiste”, “ganhe”, “capture”, “desafie”, “compita”, “marque pontos”, “lute” e “domine”, apenas duas palavras nessa mesma linha foram encontras do lado “feminino”: “ganhe” e “marque pontos”. Ademais, direções como “tente” não apareceram uma vez sequer nas instruções destinadas aos meninos, mas compuseram inúmeros dos textos direcionados às meninas (assim como outros verbos que sugerem menos agência ao interlocutor, como “suponha”, “deixe” e “não se esqueça”).
Segundo o estudo, um dos casos mais notáveis dessas diferenciações foi o das surpresas temáticas de Moranguinho/Guerra dos Clones, em que as crianças que escolhiam a primeira surpresa (muito provavelmente meninas, já que crianças são mais suscetíveis às pressões sociais que as condicionam a determinados interesses e gostos atrelados a gênero) eram interpeladas pela seguinte pergunta: “Você consegue fazer um desenho?”. Enquanto isso, os que escolhiam a segunda opção, em sua maioria meninos, eram perguntados: “Você consegue desenhar um androide diferente a cada noite?”. Em entrevista à revista Forbes, a prof. Discola afirma que “essa diferença sutil na linguagem sugere que as garotas podem não ser capazes de desenhar uma figura, ao que é presumido que meninos, por sua vez, conseguem desenhar uma figura, e são, portanto, desafiados a levar a tarefa um passo adiante e criar uma figura diferente por dia”. Essas diferenciações enfatizam o estereótipo de que garotos são mais capazes e mais propensos a engajar em atividades que são mais complexas e são, portanto, desafiados a levar a tarefa um passo adiante e criar uma figura diferente por dia”. Essas diferenciações enfatizam o estereótipo de que garotos são mais capazes e mais propensos a engajar em atividades que são mais complexas e desafiadoras do que garotas.
Ainda segundo Discola, é justamente devido à sutileza dessas diferenças que elas ainda existem. A pesquisadora admite que é muito provável que a equipe de comunicação do McDonald’s não tenha redigido os textos de maneira a intencionalmente duvidar da capacidade de suas clientes meninas. “Esse é o problema com diferenças sutis; elas passam por nós desapercebidas. Se você, por exemplo, caminhar pelo corredor de brinquedos de garotos e o de garotas, você vai ver um monte de coisas agressivas em um e não no outro. Nós notamos esse tipo de coisa. Mas não notamos as diferenças mais sutis”, ela completa.
Como resposta a pressões populares e estudos como o da prof. Discola, o McDonald’s estadunidense se comprometeu a instruir seus funcionários a não mais oferecer os brinquedos do McLanche Feliz com base no gênero de cada criança, mas sim baseados no tema de cada surpresa. Essa e outras iniciativas ao redor do planeta podem apontar para um futuro menos limitante no sentido das divisões entre meninos e meninas. Mas o caminho ainda é longo.
Um horizonte menos segregado?
Existem inúmeras comprovações científicas no campo da psicologia infantil que atestam que a brincadeira é uma das formas mais significativas pelas quais crianças aprendem, sendo que os brinquedos com os quais interagem ajudam as crianças a entender, experimentar e a moldar sua visão de mundo e de si próprias. Sendo assim, é importante que pais, mães e educadores estejam atentos às mensagens que cada brinquedo oferece a seus filhos e alunos. Da mesma forma, é urgente que empresas e corporações levem a sério esse assunto e selecionem com cuidado as ideias que seus produtos ensinam e perpetuam no universo infantil.
A notícia da mudança de paradigma que a LEGO visa aplicar nos próximos anos é animadora nesse sentido. Ao mesmo tempo, é interessante observar como essa decisão levou anos para ser tomada. A tentativa de comercialização de um conjunto tão segregado por gênero como o LEGO Friends, no recente ano de 2012, só indicava a falha da empresa em reconhecer o verdadeiro problema que mantinha meninas afastadas da marca: sua propaganda altamente direcionada apenas para meninos. De fato, ao longo de décadas, meninas têm sido deixadas de lado nas campanhas publicitárias por decisão da marca. É no mínimo irônico que a solução encontrada pela LEGO tenha sido não a de incluir as garotas no já estabelecido universo imaginativo, colorido e colaborativo dos tijolos mais famosos do planeta, mas a de segregá-las em seu próprio mundo cor de rosa, literalmente.
O mais curioso é que a LEGO parece já saber construir experiências universais de brincadeiras não focadas ou divididas por gênero. Uma campanha publicitária renomada da marca, lançada no início dos anos 1980, é um bom exemplo disso. Ao centrar-se no aspecto de como brincar e construir com LEGOs beneficia o sentimento de confiança e realização em crianças, independente de gênero, a marca se distanciava de noções retrógradas do que deve caracterizar brinquedos como femininos ou masculinos. Afinal, esse já é um grande exemplo de produto destinado ao público infantil que encoraja a cooperação mútua, o compartilhar, a criatividade e a imaginação. Esse devia ser o foco da marca, bem como de tantas outras fabricantes de brinquedos ao redor do mundo. Brincar ensina e constrói. Se queremos construir um mundo mais cooperativo e menos segregado, que comecemos pelas crianças.