Por: Marta Dueñas, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

A dor de ser quem se é: originalmente brasileiro. Parece impensável que o Brasil odeie sua origem, ainda mais o Brasil verde amarelo, o Brasil patriota. Esse país gigante que foi recentemente governado por um pulha que se dizia nacionalista. E foi ele mesmo que, por meio de discursos, ações e políticas assertivas, coordenou o maior genocídio contra os povos originários brasileiros que se tem notícia na atualidade. Povos que vem sendo dizimados, sabemos, desde a colonização. Indígenas, cultura indígena, terra indígena, tudo virou objeto de consumo, desejo e massacre em inúmeras incursões europeias na então “descoberta” do Brasil.

Demorou muito tempo na República tropicalista para que fossem tomadas medidas reparadoras e políticas afirmativas em favor da população indígena formada por diversas etnias em nosso país. Homens, mulheres e crianças que são mortos por serem quem são: indígenas. Que são massacrados para se tornarem indigentes de um sistema que não dialoga e sequer considera o modo de viver de tribos e aldeias em todo território.

Com impulso de uma agenda presidencial para verificar a situação dos Yanomamis que vem sendo denunciada (e silenciada) nesses últimos quatro anos, foi deflagrada a tragédia humanitária mais grave dos governos democráticos que se tem registro. O mais revoltante é que, apesar das cenas desumanas desse crime, trata-se de mais um caso de morte anunciada do Governo Bolsonaro.

Desafio alguém a dizer que jamais imaginou que o governo derrotado fosse capaz de tamanha crueldade. O que não tínhamos visto ainda era a face, a cor, a pele, os ossos e a inanição das pessoas Yanomamis vítimas dessa articulação macabra coordenada por um governo federal. Não há duvidas de que não se trata de descaso. Isso é um plano de governo. A morte de dezenas de indígenas é resultado de uma politica clara de extermínio bem ao estilo da extrema direita brasileira, especialista em combinar crueldade com covardia.

O ex-presidente vem construindo esses resultados com seus discursos. Não mediu palavras para dizer que não restaria 1 centímetro de terra demarcada. Não poupou ironia ao falar sobre indígenas e tampouco escondeu sua admiração e empoderamento a uma atividade econômica bastante marginal e, agora, comprovadamente criminosa como o garimpo.

A crise Yanomami vem sendo construída ao longo dos séculos, desde a formação do país, mas sem dúvida encontrou no Governo Bolsonaro, representante da extrema direita, uma estratégia de aceleração e intensificação para dizimar povos e recontar a história do avesso. Na verdade, a crise não é Yanomami, a crise é de humanidade. A crise é de um modelo de nação que esperamos redesenhar com o novo governo. Deixar para trás o modus operandi medíocre e retomar um Brasil pujante, plural, humano e de inclusão.

A agenda que marcou o Plano de Socorro da população Yanomami na última semana fez transbordar internacionalmente imagens estarrecedoras, comparáveis a campos de concentração. Cenas do holocausto com corpos franzinos, pessoas entre a vida e a morte, desnutridas, envenenadas, intoxicadas. Assim foram encontrados indígenas em seus territórios. Famílias inteiras doentes, entre a vida e a morte. Vale lembrar que, no dia 27 de janeiro, é marcado o dia Internacional da lembrança das vítimas do genocídio cometido pelos nazistas que exterminou milhões de pessoas judias, ciganas, polonesas, homossexuais, pessoas com deficiência e comunistas. Não por acaso, a Alemanha foi o primeiro país europeu a manifestar apoio para enfrentamento desse crime de impactos incomensuráveis. Eu não acredito no acaso.

O que vi, li e entendi é que não há uma tragédia, estamos colhendo o resultado de uma política pautada na violência, no preconceito e na ganância que formou parte da base do último Governo que, apesar da incompetência, obteve muito sucesso em seus crimes contra a humanidade. Esse, mais um deles.

Ainda que todas as imagens chocantes fossem novidade para muitos de nós, é preciso marcar que nos últimos três anos muitos esforços de lideranças indígenas e ONGS foram feitos no sentido de denunciar o que vinha acontecendo em diversos territórios indígenas no país. Não só os Yanomamis estavam sob a mira de um plano econômico atroz, mas também os Guajajaras, os Pataxos e os Guarani Kaiowa, por exemplo.

O Brasil mata indígenas, se não os mata, deixa que os matem com diversas camadas de violência como: invasões, desmatamento, garimpo, exploração ilegal de madeira, poluição de rios, pesca ilegal e violência armada. Há um conjunto de estratégias utilizadas para extermínio, incluindo alguns que contam com financiamento público como as ações de igrejas pentecostais, incentivo a atividades de alto impacto ambiental como garimpo, permissão de atividades ilegais como retirada de madeiras ou políticas armamentícias.

O Governo calcula que cerca de 570 crianças yanomamis morreram nos últimos quatro anos. É muito brutal. A morte de uma criança indígena é a morte do Brasil. Um Brasil que se recusa a ser quem é e que ao se olhar no espelho encontra um estranho em si e o aniquila tal similaridade. Em repulsa com sua história e sua origem ainda pulsando a toxidade colonial.

O problema do garimpo ilegal não é uma novidade na Terra Indígena Yanomami. Mas segundo o MapBiomas, a escala de crescimento do garimpo se intensificou nos últimos cinco anos. Esses dados indicam que, a partir de 2016, a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo nas terras yanomamis cresceu nada menos que 3.350%.

Então, apesar das diversas camadas de violência contra indígenas, o crime humanitário dos yanomamis tem no seu cerne o garimpo. Primeiro porque a atividade é uma das principais causadoras de doenças infectocontagiosas entra as comunidades indígenas. Além disso, a exploração dos minérios depende do uso de mercúrio, que contamina a água e os alimentos consumidos e causa uma série de prejuízos à saúde, como doenças neurológicas em recém-nascidos. Somado a tudo isso, a insegurança generalizada, a violência física e sexual cometida contra a comunidade indígena e a falta de atendimento por parte das estruturas governamentais. Os relatos da situação são absurdos como os transtornos ao atendimento à saúde das comunidades indígenas, o total abandono de postos de saúde em alguns casos e, inclusive, a ocupação das pistas comunitárias para a operação e abastecimento do garimpo. Foram feitas, também, denúncias de desvio de medicamentos reservados para os indígenas que acabaram sendo destinados aos garimpeiros.

O governo Bolsonaro não só facilitou a atividade criminosa na Amazônia como a promoveu. Não vamos deixar que caia no esquecimento a grave suspeita de que um avião da Força Aérea Brasileira tenha sido utilizado ainda em 2020 para transportar representantes do garimpo para uma reunião com o então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales. A reunião para discutir medidas de melhorias para a atividade, ou seja, injetar energia e qualidade a aqueles que ameaçam (ainda) a vida dos indígenas. Não houve descaso, houve uma politica de extermínio. É muito claro.

Pensar em indígenas morrendo por malária, cujo tratamento tem como remédio central a hidroxicloroquina que foi amplamente difundida como parte de um kit de tratamento de covid durante as curvas mais elevadas da pandemia, é no mínimo estranho. O Kit Covid seria também uma cortina de fumaça para alegar qualquer defesa a falta do antigo governo junto a essas populações? Eu trocaria estranho por perverso. Enquanto muitos discutiam a eficiência da medicação, buscavam em farmácias ou recebiam prescrição de cloroquina, os yanomamis ficavam sem medicação, lá, na “distante” Amazônia, floresta de todos nós.

Para extirpar o garimpo que vem matando yanomamis e sufocando outras aldeias pelo Brasil, será preciso uma operação estratégica e tática. Agir no local coibindo extração ilegal de ouro e minar a cadeia produtiva, que é complexa e certamente está alicerçada em atividades legais que podem esquentar a matéria prima traficada. Ouro ilegal abastece o mercado de mineração, construção, joalherias e tecnologia, para dizer o mínimo.

Para prevenir um novo ciclo criminoso, é preciso desmanchar a atmosfera de impunidade e repensar as atividades econômicas de quem vive do garimpo que, muitas vezes, passa de uma geração a outra. É preciso substituir o discurso de empoderamento ao garimpo, garantido pelo ex-presidente, por ações policiais dando nome e consequências reais a quem está na cadeia do crime.

O garimpo não é uma atividade artesanal, está mais para uma rede criminosa com conexões internacionais para um pool de produtos ilegais. Descrever os garimpeiros como um escoteiro explorador e garantir ao garimpo a pecha de atividade industrial é mais uma das narrativas mentirosas de Bolsonaro e sua gangue. São mais de 400 pontos de garimpo ilegal no país. Somente na Amazônia são relatadas cerca de 1.200 pistas de pouso clandestinas.

Enquanto dizem que o Brasil vai se tornar uma Venezuela, o ex-presidente protetor dos garimpeiros autorizou uma atividade que teceu uma malha aérea Brasil – Venezuela para a logística do ouro ilegal, do narcotráfico e outros produtos do submundo do crime. Reconhecer o garimpo como crime e o Brasil como terra indígena é o inicio da virada de mesa.

É como diz Darcy Ribeiro: Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos”, palavras profundas de quem se olha no espelho, são as que escolho para encerrar minha coluna desta semana.