Black Mirror pode apresentar o espelho negro da sociedade?
Por Luciana Piris, jornalista
Como Black Mirror consegue levantar discussões e consequências extremas de um mundo bizarro
Mesmo com o hiato de quatro anos, a sexta temporada de Black Mirror retorna às telas com temas inerentes à sociedade. O presente texto não pretende divagar sobre elenco, roteiro e efeitos especiais. O que causa admiração na série de Charlie Brooker é como a tecnologia pode ser usada de forma sombria e sem escrúpulos.
Para Clesia Cardoso, psicóloga da Conexões & Desenvolvimento, a série Black Mirror mostra possibilidades de um mundo que não soube utilizar a tecnologia para apoiar os problemas atuais e reais e que, principalmente, poderiam nos conectar enquanto comunidade, por exemplo: curar doenças e acabar com desigualdades. “Foi, na realidade, para o extremo oposto: o prejuízo com o controle, a exposição da privacidade, o isolamento social e uma necessidade sombria a cada episódio, desumanizando as pessoas e as relações”, explica.
No episódio “15 milhões de Méritos”, o que mais intriga é a aspirante a cantora em um obscuro concurso de música com o sonho sincero de ter seu talento reconhecido. O colega de trabalho e protagonista principal, Bing, resolve doar seus créditos para ajudar a recém colega, Abi, na empreitada. Só que infelizmente Abi resolve se tornar uma estrela pornô. Bing patrocina e não fica com a sua musa. Mas fazer o quê? Ossos do ofício de uma sociedade.
Para a coach Clesia, a psicologia está revendo seus métodos e conseguindo avançar em novos protocolos. “E definindo novos tratamentos para Depressão e Ansiedade com a TCC (terapia cognitivo comportamental) e a DBT (Terapia Comportamental Dialética) para Transtorno de Personalidade Borderline e Transtornos de Humor”.
Retornando às castas e suas regras. Todos perderam a noção da realidade quando o episódio “Cala a Boca. E Dança” mostra um garoto pego em flagrante com a “mão na massa”, posteriormente chantageado e que corre contra o tempo para executar tarefas sinistras. E o final? Surpreendente! Não devemos julgar o livro apenas pela capa.
A sexta temporada trata de temas como xenofobia, a exposição e controle da grande mídia, a busca pela fama, os abismos emocionais e racismo. São temas que precisam realmente entrar na mente das novas gerações para que ações devastadoras e cruéis não voltem a ocorrer em uma sociedade que pretende ser minimamente razoável. Como declara a psicóloga e coach da Conexões & Desenvolvimento, Dalia Serra, jovens podem ser particularmente vulneráveis aos efeitos negativos do uso excessivo da tecnologia, incluindo problemas de saúde mental, desenvolvimento cognitivo e social. “O uso excessivo das tecnologias com foco nas redes sociais distancia as pessoas da realidade. Faltam limites claros do uso consciente e adequado, dificultando nos indivíduos o entendimento do impacto insalubre que este uso excessivo pode gerar. É importante abordar o uso da tecnologia como parte de um quadro mais amplo de saúde mental”, explica a coach.
E em quanto tempo essa situação será sanada? Porque são questões intrínsecas do portão para dentro das casas. Algo velado e que, muitas vezes, fica no lado obscuro.
Temos que ter pontos de vistas diferentes dentro do uso da tecnologia e como isso pode afetar nossas relações. E essa série traz à tona essa reflexão. É a logística reversa, como no episódio “ Joan é Péssima”, que fala de uma adulta normal, que tem seus grilos e frustrações, resiste ao “rodo cotidiano”, e acaba tendo sua vida estampada no streaming mais acessado do mundo. Nessa empreitada, ela busca um advogado e ele mesmo não consegue defender, porque faz parte do termo de uso da plataforma. O que fazer? Para onde ir quando somos cancelados na internet? Em uma ilha deserta é que não será.
Para Dalia Serra, a série permite ampliar nosso olhar e entender as consequências desse mundo bizarro e extremo e até ter novas abordagens sobre a cultura do cancelamento. “E claro, contribuir para novos insights e reflexões sobre o impacto da tecnologia da saúde mental, no comportamento humano e nas interações sociais”.
É frustrante. A tecnologia evolui para facilitar a vida. Só que o cérebro de alguns ainda não sabem que é crime. A legislação vigente ainda é incipiente. Caminhamos a passos de jabuti e na verdade precisávamos da velocidade de jet sky para que não prejudicasse tantas crianças, adolescentes e adultos.
A série traz recortes de nossa sociedade que mexem com nosso pensamento, colocando em xeque a integridade dos protagonistas, trazendo desafios no limite. É algo como no episódio “Gram”, onde o marido traído absorve indicadores de que sua esposa está mais apaixonada pelo reencontro com um antigo amigo do que com a presença dele e sua avaliação profissional.
A série mostra de forma única como as relações humanas mudaram com o uso da tecnologia. Antes conhecer alguém pela Internet era algo diferente e aceitável.
Para a psicóloga Dalia Serra, o que está acontecendo é que as pessoas estão utilizando a tecnologia como único recurso para conhecer e interagir com pessoas. “Tudo começou na pandemia e agora já era para se ter normalizado. Há pessoas que iniciaram e permanecem com esse módulo único de sobrevivência sem mais achar que precisa do modelo social anterior, isso adoece muitos. Tratar os sintomas e doenças relacionados ao uso da tecnologia requer intervenções psicológicas, mudanças de comportamentos e utilização consciente da tecnologia”.
Veja os pontos que as psicólogas pontuam:
- Conscientizar e educar as pessoas sobre estas consequências pode promover a busca por mudanças;
- Definir limites de uso, como durante refeições ou antes de dormir, podem promover a conexão interpessoal real;
- Incentivar encontros presenciais pode cultivar a empatia, compreensão emocional e conexões genuínas;
- Incentivar atividades offline, ao ar livre e interações sociais, fora do mundo digital.
E para casos mais graves, procurar ajuda profissional, no caso de atendimentos psicoterapeuticos.