Por: Marta Dueñas, jornalista
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Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista

Nova música do talentoso alagoano Djavan “Beleza Destruída”, gravada com Milton Nascimento, poderia ser sobre Maceió, mas não é. Maceió continua linda, apesar das vidas destruídas fora do ângulo das fotos da orla

O turista que visita Maceió fica em êxtase com a beleza de sua orla e a cor do mar. A capital alagoana é uma das queridinhas do turismo sol e mar no Brasil e, na temporada 22/23, vai receber 23 cruzeiros vindos de diversas partes do mundo. Férias em Alagoas é sinônimo de água de coco, sol e vida mansa. Mar calmo e sem ondas, a maior parte das praias do estado e também em Maceió não oferece riscos para banhistas e tampouco embarcações. Nenhum relato de afundamento de navios ou acidentes graves. Mas não muito longe de onde atracam os principais cruzeiros que chegam para desfrutar desse litoral, quatro bairros afundam e desenham a maior tragédia provocada por mineração em área urbana no mundo!

Ao todo, quase 60 mil pessoas afetadas desde 2018, ano em que foi registrado o primeiro tremor na região. São mais de 14 mil imóveis condenados e milhares de pessoas obrigadas a abandonar suas casas e seus negócios em quatro bairros atingidos: Pinheiro, Bom Parto, Mutange e Bebedouro. Atualmente, parte do Bairro Farol já registra afundamento de solo e risco nas estruturas prediais. Acredita-se que a área não deve voltar a ser habitada no futuro. Esse triste capítulo da história da linda Maceió iniciou em 3 de março de 2018, quando um tremor de terra foi registrado gerando pânico na população. Paredes racharam, ruas afundaram e buracos se formaram nos pisos das casas e apartamentos. Prédios, casas, comércio e escolas foram esvaziados pela Defesa Civil. Depois de um ano, o veredicto: o afundamento dos bairros, a rachadura das casas que obrigou as pessoas a deixarem os imóveis é resultado direto da mineração.

Esse é o caso da Braskem, a maior petroquímica das Américas, responsável pela extração de sal-gema em solo alagoano, que vem explorando a região desde os anos 70 para produção de PVC e soda cáustica. A empresa tinha 35 minas ativas na capital, elas foram encerradas no final de 2019.

A mineração, por uma série de fatores e também por interesse do segmento, não mantém comunicação eficiente e direta com a população. E é verdade que não paramos para pensar em tudo que o setor produz ou que implica nas nossas vidas. Acabamos falando de mineração quando não queremos viver ou morrer, digamos, por seus desastres. Tudo que aconteceu em Maceió é muito impactante. Se você se encoraja a sair da orla, que é magnética, e passar pelos bairros atingidos, verá uma cidade fantasma. Casas desocupadas, prédios vazios, ruas fechadas. É um cenário devastador. Histórias interrompidas. Visual de guerra civil. Tudo é apenas uma pequena parte desse terror que ainda não é conhecido pela maioria dos brasileiros.

Já é considerada, repito, a maior tragédia urbana causada por mineração no mundo e segue em curso, já que o solo continua afundando e pode levar até 10 anos para estabilizar.

O afundamento dos bairros em Maceió é um “desastre” sem precedentes no Brasil que parece não chamar atenção da imprensa, das autoridades e da sociedade brasileira. Não gerou selo nas redes sociais, não formou campanha “Somos todos Maceió”. Falta de empatia do brasileiro com o povo alagoano? Não creio. Mas aposto que o silêncio indigesto é parte do funcionamento do mercado que se choca com políticas públicas sociais, mas não manifesta repúdio a crimes contra a humanidade. A Braskem não só está blindada pelos grandes veículos de comunicação como parece ter aval do setor público alagoano que investe em divulgar o turismo na capital acima de qualquer desastre humano, social e ambiental.

São camadas e mais camadas de danos e desassistência. Famílias sem casa ainda que aderindo aos programas oferecidos pela empresa. O ressarcimento dos imóveis é de valor contestável e o apoio para aluguel não dá condições da maioria das famílias habitar estruturas similares às que tinham. É com instabilidade, incerteza e perdas que vão da grana ao sentimental que homens, mulheres e crianças precisam retomar suas rotinas. Danos afetivos que não têm métrica para reparar.

Para as crianças há ainda um agravamento, já que nos bairros afetados existem 17 unidades de ensino, sendo 13 estaduais e 4 municipais. São 7 mil alunos afetados pela mineração. Um pouco mais de 3.500 alunos já foram realocados para outros prédios, porém 3.036 seguem estudando nas estruturas localizadas em áreas de observação da Defesa Civil e 531 estão, ainda, estudando à distância. É um crime contra a educação e, sobretudo, contra a sociedade.

Segue a rachadura, digo, o fio comigo: bairros afundando, pessoas, escolas, igrejas, comércio, desalojados. Uma cicatriz na capital de um estado em franco desenvolvimento e crescimento e, ainda assim, parece que tudo vai bem para a empresa responsável. Além do lucro, a receita da Braskem no segundo semestre do ano passado subiu 136% na comparação anual e 16% em relação ao primeiro trimestre. A Braskem é também a empresa com melhor desempenho no Ibovespa com ganhos de até 145% até meados de 2022. Curioso como o mercado reage diante de desastres, injustiças e crimes contra direitos humanos.

As vítimas da Braskem seguem em disputa na justiça contra a mineradora e chegaram a abrir processo internacional, no tribunal de Roterdã. Enquanto no Brasil tudo caminha lentamente e a empresa manifesta, reiteradamente, que está adotando as medidas cabíveis e continuará o trabalho na solução do “fenômeno” geológico, na Holanda a ação coletiva movida por maceioenses avança na justiça. Os atingidos exigem transparência no processo de relocação, revisão dos valores indenizatórios, apresentação de planos e projetos para as áreas afetadas. Ao que tudo indica não adianta só afundar a história das pessoas, tem que abafar o caso também.

A desocupação dos bairros gerou uma série de impactos não mapeados e sem ações compensatórias. Imagina se você tem um comércio de bairro cujas relações vão além do comercial? A padaria que você frequenta a 20 anos, a banca ou o armazém da rua. Mesmo que você supere o impacto da mudança com sangue nos olhos para produzir um novo negócio, um novo bairro pode ser decisivo para o fracasso do seu estabelecimento. Comércio de bairro é sustentado por história e relações.

O desastre da Braskem não poupou nem os mortos, já que o cemitério Santo Antônio, localizado no bairro Bebedouro atingido pelo afundamento do solo, está interditado há 2 anos e neste tempo não houve qualquer definição sobre ações com relação à atividade. Famílias que possuem jazigo não podem usá-los para sepultarem seus mortos, por exemplo.

Estive em dois bairros desses que agora são chamados fantasma em 2019, 2020 e 2022. Não voltei porque precisei fazer algo lá. Voltei porque era preciso que eu fizesse algo. Caminhei pelas ruas, vi casas em esqueleto, vi histórias em decomposição. Algumas famílias retiraram o que puderam de suas antigas residências: portas, marcos de janela, detalhes. Como que para carregar o que sobrou de suas identidades residenciais e o resultado é uma fotografia de cidade bombardeada. Lugares vazios, sujos. Bichos abandonados.

Me fixei na cena de um cãozinho andarilho. Caminhei alguns metros com ele, percorrendo as calçadas em pedaços. Eu sinto a tristeza daquele dia até hoje. A simbólica cena do cachorro cabisbaixo na esperança de encontrar sua família ou no desespero de buscar um lar onde as rachaduras engoliram as moradias e afetos.

Não vi uma linha do setor sobre o ocorrido. Não acredito que esse desastre não tenha sensibilizado gestores e empresários do ramo da mineração. Acho um desrespeito quando um segmento não se posiciona sobre algo que sabe ou vê. Não há afundamento capaz de enterrar a história das pessoas e dos fatos. Não há silêncio que faça com que o que acontece em Maceió se torne invisível. Ainda que tudo isso seja também torturante, não será possível esconder essa sujeirinha embaixo do tapete, até porque em algum momento esses quatro bairros voltarão como novos produtos imobiliários rentáveis nas barbas daqueles que perderam ali suas histórias.

As indenizações da Braskem e os valores repassados às famílias torarão a empresa proprietária dos imóveis e possivelmente das regiões e eu diria que esse é o próximo crime em curso: um reordenamento dos valores imobiliários na capital fazendo um jogo de influências no esquema de realocação de famílias e empresas afetadas pela mineração. Sem contar que a empresa se torna proprietária de uma área que poderá valer R$ 40 bilhões futuramente, segundo estimativas de um dos atingidos pela empresa que é consultor imobiliário. O conjunto de bairros está localizado em região estratégica da cidade e tem ainda 3 km de orla lagunar.

Até me mudar de Porto Alegre para um paraíso litorâneo e solar em Alagoas, eu desconhecia muitas coisas daqui, dentre elas o poder do silêncio e de como as regiões turísticas não cansam de virar as costas para a realidade, afinal o foco é férias e isso significa desligar das agruras que por ventura a vida joga no nosso caminho. Para além dos paraísos, existem histórias e essa é uma das mais pesadas que visitei.

Se quiser saber mais, assista ao documentário “A Braskem passou por aqui: catástrofe em Maceió”, disponível no YouTube. Siga o perfil do Movimento Unificado das Vítimas da Braskem no Instagram @vitimasdabraskem. Se você gosta do tema, indico o site Observatório da Mineração ou, ainda, não deixe de conhecer esse pedaço fantasma em Maceió em respeito as quase 60 mil famílias prejudicadas por esse crime. A cidade é linda, Alagoas merece sua visita. Depois de se inebriar com um dos mares mais lindos do país, não deixe de conhecer esse trecho da história.

Não pense que isso vai estragar a história do turismo nessa terra tão linda. O que estraga a história dos lugares são contos calados, vidas ceifadas, crimes sem justiça. Falar, ver e ter posições faz o destino mais interessante. Lugares com alma e história tornam-se ainda mais belos não pelo filtro do cartão postal, mas pela beleza, apesar de tudo, que a vida real tem.