Ingerência do governo Bolsonaro serpenteia dentro de ministérios, agências reguladoras e
universidades federais, criando um governo cercado de instituições-fantoche

Comentarista Melissa Rocha- RJ
melissa.rocha@mulheresjornalistas.com

O aparelhamento do Estado é uma das armas mais sórdidas de governos autoritários. Trata-se de uma forma de expandir os tentáculos de um governante para dentro de instituições de forma a manipular a atuação destas em seu favor. Como consequência, cria-se um governo cercado por instituições-fantoche.

Se há um governo que vem usando essa tática com maestria é o do presidente Jair Bolsonaro. Em campanha, Bolsonaro prometeu inúmeras vezes não interferir na atuação de outros órgãos para além do Executivo ou de qualquer instituição do país. O que se está vendo na prática é exatamente o oposto: a ingerência do governo segue a pleno vapor, serpenteando dentro de ministérios, agências reguladoras e instituições acadêmicas.

Para chegar a essa constatação, basta reunir alguns episódios ocorridos neste ano. Em abril, o presidente iniciou um embate com o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. O embate tinha como raiz as investidas do presidente no comando da Polícia Federal, órgão que era subordinado ao ministério de Moro. Bolsonaro ganhou a disputa, que culminou com a saída de Moro do governo.

Após a pandemia do novo coronavírus irromper no Brasil, a política de aparelhamento bolsonarista passou a mirar o Ministério da Saúde. Bolsonaro pressionou ministros a ecoarem sua estratégia de minimizar a pandemia. Faltou médico que aceitasse trocar ciência por ideologia, então foi alçado ao posto Eduardo Pazuello, que é ex-comandante da Base de Apoio Logístico do Exército – e é fato público e notório que a ala militar está cooptada pelo presidente. Pazuello acatou a missão de minimizar a pandemia, o que se reflete em seu recente – e espantoso – questionamento do porquê da ansiedade e angústia em torno da vacina contra a covid-19.

Ainda no ramo da saúde, outro exemplo de aparelhamento é observado na Anvisa. O órgão, hoje, é incrustado de militares indicados por Bolsonaro no intuito de controlar a política de vacinas contra o novo coronavírus. O mais recente a assumir um posto na agência foi o tenente-coronel reformado do Exército, Jorge Luiz Kormann, que não tem nenhuma experiência ou formação na área médica. Se aprovado em sabatina do Senado, Kormann será um dos cinco integrantes da diretoria da Anvisa.

Internamente, a Anvisa se defende como pode. Nesta semana, a diretoria colegiada da agência aprovou uma mudança na configuração interna do órgão que alçou Meiruze Sousa Freitas ao comando da área de Medicamentos, Produtos Biológicos e Alimentos – que é responsável pela concessão de registro de vacinas. Meiruze já ocupava o posto de diretora de Fiscalização, e com a mudança poderá acumular as duas funções. A medida é uma tentativa de blindar a área de Medicamentos da politização. Embora tenha sido indicada por Bolsonaro, Meiruze Freitas é servidora de carreira da Anvisa, onde atua desde 2007. A expectativa é que ela tenha uma atuação mais técnica e menos politizada.

Impossível deixar de citar ainda o aparelhamento do governo na área da Educação. O presidente não só alçou à chefia do MEC nomes completamente despreparados para o cargo – mas totalmente alinhados ao governo -, como vem interferindo na escolha de reitores de universidades federais. Tradicionalmente, as instituições enviam ao presidente uma lista tríplice com os três nomes mais votados para o cargo de reitor, decididos em eleições internas.

Pela tradição, a escolha fica sendo o nome mais votado – mesmo modelo usado pelo MPF para definir o nome a comandar a PGR. Porém, o presidente vem desrespeitando sistematicamente essa tradição, e escolhendo nomes fora da lista tríplice. Já são 16 universidades federais que passaram por essa ingerência. E a justificativa do presidente se confunde com uma chacota: em uma live no Facebook, ele afirmou que não quer interferir politicamente nas instituições, mas que não vai aprovar ninguém com ideologia partidária diferente da sua.

O setor de comunicação também não se livrou da ingerência do governo. Bolsonaro, que durante campanha atacou a EBC, em seu primeiro ano de governo fez da emissora sua mera porta-voz. Atualmente, há censura nas redações da empresa que impedem que seja veiculado qualquer conteúdo crítico ao governo. E mais: em dezembro de 2019, Bolsonaro deu de presente para a youtuber de games Karol Eller um cargo na EBC, com salário de R$ 10.700.

Karol Eller é muito amiga do filho mais novo do presidente, Renan Jair, que também é youtuber de games. Além disso, o presidente constantemente ameaça não renovar a concessão de emissoras críticas ao seu governo – algo que nenhum outro governo fez desde a redemocratização, nem mesmo o PT no auge da crise que levou ao impeachment de Dilma.

Para um presidente que foi eleito com a promessa de não ingerência, a lista de interferências promovidas por Bolsonaro é bem extensa. Na verdade, o presidente brasileiro tem bastante em comum com um homólogo seu sul-americano, que também chegou ao poder exaltando seu histórico no exército.

Esse presidente sul-americano cercou a alta cúpula do seu governo de militares, que recebem altos salários em troca de lealdade. Isso permitiu a ele se aferroar no poder, enquanto interfere em todas as áreas do governo, promove uma série de violações aos direitos humanos e o desmonte dos meios de comunicação que ousam criticá-lo. O nome desse presidente é Nicolás Maduro, mandatário da Venezuela.