Amamentação é um direito das crianças, não das mulheres trans

Por Regina Fiore, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Em suas redes sociais, o perfil O Joio e o Trigo trouxe para a pauta da alimentação a amamentação por mulheres trans. A diretora do Instituto MATRIA e o educador e idealizador do perfil Cria de Fato falaram sobre o assunto, cada vez mais em voga no Brasil
Há um ano, o podcast “Prato Cheio”, conteúdo produzido pela equipe de O Joio e o Trigo, trouxe para a mesa uma discussão que envolve diretamente o direito das mulheres e das crianças: a questão do aleitamento materno. De lá para cá, outras discussões têm se desenvolvido sobre o tema, surpreendentemente, envolvendo pouco os sujeitos que são diretamente afetados pela questão: as mães e as crianças.
Em um post feito para suas redes sociais, o Joio traz uma imagem com a seguinte afirmação: “Gênero não é aquilo que o sujeito é, mas, principalmente, aquilo que ele faz”. Na legenda: “No próximo episódio do Prato Cheio, a gente vai trazer um tema nada óbvio, porque rompe com a ideia de que só mulheres cisgênero podem gestar e amamentar”.
“Mulheres cisgênero” é a classificação que alguns grupos ativistas e organizações dão para as mulheres nascidas no sexo feminino que continuam, ao longo da vida, a se “comportarem como mulheres”, ou seja, não se autoindentificam como parte de outro gênero – portanto, não são transgênero.
Daí, vale a explicação: o que são, então, mulheres transgênero? São pessoas nascidas no sexo masculino, com características biológicas primárias (presença de órgão reprodutor masculino) e secundárias (alta produção de testosterona, engrossamento da voz na adolescência, maior presença de pelos no corpo) masculinas e que, depois de adultas, optam por assumir uma identidade considerada feminina.
Dessa forma, passam a usar cabelos longos, unhas compridas, passam por procedimentos de implantes de silicone para aumento do volume das mamas, usam hormônios para diminuição dos pelos corporais e mudança da voz e, em alguns casos, fazem a chamada cirurgia de redesignação sexual, mudando a aparência de seu órgão sexual.
O mesmo acontece com os homens transgênero, ou seja, pessoas nascidas no sexo feminino que, depois, se identificam como homens e, muitas vezes, tomam hormônios supressores para perderem as características físicas femininas ou passam por cirurgias como a remoção das mamas e implantes penianos.
Biologia: um fator material e real
Existem diversas opções estéticas, hormonais e cirúrgicas no mercado para que homens e mulheres trans façam a transição da aparência do corpo. Também é fato que as mulheres nascem, biologicamente, com útero, aparelho reprodutor feminino completo e características secundárias do sexo feminino, como desenvolvimento das mamas e dos dutos de condução do leite, ciclo menstrual na maturação sexual, entre outras.
Obviamente, existem exceções – mas as próprias exceções são diagnosticadas com base na realidade material biológica que, nada mais é, do que o desenvolvimento biológico tanto antes quanto depois do nascimento de uma menina.
Uma semana depois de ter postado a frase, o perfil das redes sociais de O Joio e o Trigo divulgou o episódio “Quem pode dar o peito?” do podcast “Prato Cheio” com um texto que dizia: “Gestação e aleitamento humano desempenhado por homens trans, travestis, mulheres transsexuais e pessoas não-binárias. É esse o assunto do novo episódio do Prato Cheio, no qual a gente explica por que gestar e amamentar são, acima de tudo, processos socioculturais. Fomos buscar respostas na medicina, na antropologia e nas experiências de casais e pessoas transgênero para dar conta da pergunta: quem pode dar o peito e sustentar um barrigão?”.

Denise Vieira Furtado de Garcia e Castro, 44 anos, mãe, bacharel em direito, diretora do Instituto MATRIA (Mulheres Associadas, Mães e Trabalhadoras do Brasil), em uma entrevista exclusiva para o Instituto Mulheres Jornalistas, afirma: “O movimento transativista é uma agenda de apagamento da mulher e redução da mulher e as suas funções biológicas. Por isso, hoje as palavras ‘mulher’ e ‘mãe’ passaram a ser tratadas como se fossem discursos”.
O Instituto MATRIA, junto de especialistas técnicos formados também na área de saúde, criaram um grupo de trabalho intitulado: “Falsas afirmações sobre ‘aleitamento’ por pessoas do sexo masculino: a segurança do bebê em foco”.
Ou seja, de acordo com Denise, “dar o peito” e “sustentar o barrigão”, ações diretamente ligadas ao sexo feminino, têm sido relativizadas por funções como “pessoas que gestam”, “pessoas que amamentam”, “pessoas que menstruam”, expressões que têm cada vez mais sido criticadas, principalmente, por mulheres que estão sentindo, cada vez mais, que vêm perdendo seus espaços para outras pautas, tanto nacionalmente quanto globalmente.
“A mulher não é tratada como ser humano completo, íntegro. Ela é tratada como funções biológicas que podem ser adquiridas. O conceito de identidade de gênero parte do princípio que ser mulher não é uma materialidade, mas, sim, uma performance que você pode adquirir”, explica. “Para você ser mulher, você só precisa se parecer com uma mulher, numa tentativa de imitar a fêmea adulta humana”.
Denise parte do pressuposto do que todos nós aprendemos na aula de biologia da escola: depois da fecundação do óvulo (gameta feminino) pelo espermatozóide (gameta masculino), o crescimento do embrião atinge um certo nível onde são desenvolvidos os órgão genitais: XX para sexo feminino, onde serão desenvolvidos órgãos sexuais como útero, ovários, trompas uterinas, vagina e vulta, ou XY para sexo masculino, no qual testículos e pênis serão desenvolvidos.
Além disso, as características secundárias biológicas de cada pessoa devem se desenvolver com toda sua potência durante a adolescência, ou puberdade, – uma delas, entre as pessoas do sexo feminino, é o desenvolvimento das mamas, capazes de produzirem leite materno.
“Para dar legitimidade ao movimento, o transativismo se aliou ao movimento de orientação sexual, a comunidade LGB. A partir da letra ‘T’, não falamos mais de orientação sexual, mas de autoidentificação de gênero, seguida por ‘QIAPNI+, mas são duas pautas completamente diferentes”, afirma Denise.
“A amamentação tem sido alvo do movimento transativista porque as pessoas que são parte dele alegam que o ato de amamentar é uma forma de afirmação de gênero. A partir do momento em que elas dizem que um homem trans pode engravidar, afirmam também que uma mulher trans pode amamentar. Só que um homem trans só pode engravidar porque ele é uma mulher biológica. Uma mulher trans, para amamentar e usar tal meio para afirmar essa sua identidade de gênero, precisa se submeter a tratamentos”, finaliza.
Lobby estabelecido, mercado aquecido
Depois de o perfil de O Joio e o Trigo receber muitos protestos nos comentários da postagem sobre “dar o peito” e “sustentar o barrigão” nas redes sociais – onde, inclusive seus membros foram questionados por quem e por quanto a organização é financiada para produzir seus conteúdos -, os comentários foram excluídos e fechados, na determinada publicação.

Uma das pessoas que participou (e participa, de forma contínua e ativa) do debate foi Mateus da Silva Sousa, escritor, ativista social e empreendedor da educação, formado em Políticas Públicas e Territorialização em Favelas pela Fiocruz, graduando em Licenciatura de História pela UFRJ e criador do perfil das redes sociais Cria de Fato, durante o período da pandemia de covid-19.
“Hoje, atuo em duas frentes na educação: por meio de aulas gravadas em dois cursos e dois livros publicados, ensino variados assuntos sobre política e história. No Congresso Internacional de Educação Respeitosa, ajudo a promover atualizações para profissionais da saúde e da educação sobre neurociência, psicologia e educação. Acredito que, assim, poderemos ajudar a mudar a base da formação humana, que é tão precarizada em nosso país”, conta Mateus.
Nascido no Rio de Janeiro, o educador é pai de um menino com espectro autista e apostou na educação como um caminho para transformar a realidade. “Não apenas a minha, mas de fato, transmitir conhecimentos e contribuir para um mundo melhor”, diz. “Um dos objetivos dos conteúdos que produzo por meio das iniciativas do ‘Cria de Fato’ é mapear de onde vem o financiamento para realização de reportagens como independentes. Por exemplo, o financiamento do conteúdo de O Joio e o Trigo que defende a ‘amamentação’ por mulheres trans vem, de forma indireta, do capital de empresas internacionais”.
“A questão transativista começa na filosofia, e vai tomando um contorno, década após década, cada vez mais medicamentoso, cada vez mais incisivo politicamente, como um movimento organizado, reivindicando direitos de uma identidade que surge a partir de estudos que são filosóficos. A partir da década de 70, as empresas começam a enxergar nisso um mercado altamente lucrativo e promissor”, explica Mateus.
O educador traz como exemplo as cirurgias introduzidas por John Money, psicólogo, sexólogo e autor neozelandês, especializado em pesquisa de identidade sexual e biologia de gênero. Ele foi um dos primeiros cientistas a estudar a psicologia da fluidez sexual e como as construções societárias de gênero afetam um indivíduo. O psicólogo neozelandês foi responsável por contribuições como mudanças das expressões “perversões” para “parafilias” e “preferência sexual” para “orientação sexual”, argumentando que a atração não é necessariamente uma questão de livre-arbítrio.
Também foi ele que criou o, agora comum, termo de “papel de gênero”, que ele diferenciou do conceito do papel sexual a partir de seus estudos com pessoas nascidas hermafroditas, ou seja, que nasceram com a presença de ambos os aparelhos reprodutores, tanto feminino quanto masculino.
Além disso, Money tornou o conceito de gênero mais abrangente do que masculino/ feminino. Para ele, o gênero era uma questão de reconhecimento pessoal, atribuição social ou determinação legal, não apenas com base nos genitais, mas também com base em critérios somáticos e comportamentais que vão além das diferenças genitais.
Além da publicação de diversos artigos e recebimento de premiações, Money foi cercado de polêmicas por cirurgias de redesignação sexual que comandou na Clínica de Identidade de Gênero Johns Hopkins, fundada por ele em 1965. “Money é uma figura bastante questionável. As cirurgias de redesignação sexual surgiram a partir de experimentos científicos, que geraram várias vítimas ao longo dos anos. Uma série de pessoas destransionaram depois disso e se perceberam mutiladas e com graves problemas de saúde”, complementa Mateus.
O processo de destransição de gênero ocorre quando a pessoas, depois de se tornar homem ou mulher transgênero, decidem voltar a corresponder ao gênero fruto de seu sexo biológico. Ou seja, a mulher trans volta a se identificar como homem e o homem trans volta a se identificar como mulher, ainda que não siga os padrões heteronormativos.
“Esse processo histórico hoje ganha um contorno muito maior com a indústria associada em plena expansão. Hoje existem países, como a Tailândia, onde a transição de gênero foi vinculada à indústria do turismo, por causa da legislação do país que dá liberdade total ao mercado para se instaurar e promover cirurgias, tanto nas pessoas nativas quanto nas que vão para o país apenas para passar pelo processo de transição, com valores mais atrativos”.
Mulheres, criança e o protagonismo da amamentação
Após tantas críticas, o perfil social de O Joio e o Trigo fez outra publicação de uma imagem, com os seguintes dizeres: “A prática sexual e o exercício da parentalidade são direito de todos, todas e todes e devem ser garantidos pelo Estado. É o que preconiza o Ministério da Saúde por meio dos Cadernos de Atenção Básica – Direitos Sexuais e Reprodutivos”.
Um desses cadernos, o nº 23, também afirma: “O aleitamento materno é a mais sábia estratégia natural de vínculo, afeto, proteção e nutrição para a criança e constitui a mais sensível, econômica e eficaz intervenção para redução da morbimortalidade infantil. Permite ainda um grandioso impacto na promoção da saúde integral da dupla mãe/ bebê e regozijo de toda a sociedade”.
O material do Ministério da Saúde prossegue: “Se a manutenção do aleitamento materno é vital […] a implementação das ações de proteção e promoção do aleitamento materno e da adequada alimentação complementar depende de esforços coletivos intersetoriais e constitui enorme desafio para o sistema de saúde, numa perspectiva de abordagem integral e humanizada”. O próprio Ministério da Saúde, citado pelo perfil de O Joio e o Trigo, coloca a dupla mãe/ bebê como foco na promoção da saúde por meio da amamentação.
Vale ressaltar que, tanto a Organização Mundial quanto o Ministério da Saúde, recomendam aleitamento materno exclusivo para os bebês até os seis meses de idade e a manutenção da amamentação até os dois anos de idade, mesmo após a introdução alimentar. Isso porque o leite materno possui todos os nutrientes, macro ou micro, para garantir a saúde alimentar dos bebês em seus primeiros seis meses de vida e continua trazendo benefícios para a criança durante a primeira infância.
Além disso, apenas pela amamentação a criança tem acesso, logo nos primeiros dias, ao colostro: leite materno amarelado e espesso rico em proteínas, gorduras e outros nutrientes que são fundamentais para a sobrevivência dos bebês recém-nascidos, além dos benefícios para as mães que deram à luz recentemente e estão passando pelo puerpério. Apenas as mulheres com mamas, hormônios que estimulam a produção de leite e dutos de condução para o aleitamento são capazes de produzir o colostro.
Apesar de ser fundamental para as mães os direitos garantidos para que possam amamentar seus filhos e filhas, como a licença maternidade, o direito da amamentação em público, o acesso ao Sistema Único de Saúde para acompanhamento, a existência de lugares seguros onde as mães possam ordenhar o leite, entre outros, o aleitamento materno é um direito dos bebês para garantirem que recebam a nutrição física e emocional necessária em seus primeiros meses de vida.
“A amamentação com suporte físico, emocional e social é um direito dos bebês, exclusivamente. É uma prerrogativa das mães, que podem ou não amamentar por razões diversas e um dever da família e da sociedade de cooperar e apoiar, dada a extrema importância para saúde da criança, mas o principal protagonista da amamentação é o bebê”, aponta Denise.
A diretora do Instituto MATRIA, ao realizar sua pesquisa para a tese publicada em 2024, ressalta que a reprodução – do qual a amamentação faz parte – é uma experiência contínua para a mulher e não pode ser experienciada em fragmentos. “A fisiologia das mamas difere entre os sexos”, afirma Denise, em sua pesquisa.
“As mamas constituem um tecido vivo que se modifica, durante a gravidez, lactação e menopausa. Em alguns estudos com pessoas do sexo masculino em uso de hormônio cross-sex, o crescimento dos seios por vias hormonais exógenas (uso de supressores de testosterona e aplicação de estrogênio) resulta em desenvolvimento incompleto”.
Ou seja, mesmo quando as mulheres trans usam hormônios para desenvolvimento das mamas, eles não são suficientes para atingir a maturação necessária para alimentar os bebês por meio do aleitamento materno, assim como a produção da galactorreia, substância que se assemelha em alguns aspectos ao leite e é produzida pela indução hormonal em mulheres trans para que elas experienciam a amamentação, não é suficiente para a nutrição das crianças.
A galactorreia, por ser fruto de uma indução hormonal contínua e exógena – ou seja, não são hormônios produzidos pelo próprio corpo, não é produzida em quantidades adequadas para alimentar as crianças. Enquanto as mulheres produzem de 400ml a 800ml de leite materno por dia, a galactorreia se limita a produção de 90ml a 240ml diários.
Além disso, não há estudos suficientes para atestar que a galactorreia seja tão nutritiva ou necessária para os bebês quanto o leite materno, assim como há ausência de materiais científicos que comprovem os efeitos negativos da galactorreia em longo prazo no organismo das crianças
“A amamentação é uma questão de saúde e é exclusivamente um direito do bebê. Não é um direito de adultos. Amamentar não é, de forma alguma, um direito de homens biológicos identificados como mulheres trans, porque a amamentação não é uma forma de afirmação de gênero, não é esse o objetivo da amamentação”, complementa Denise.
“O único objetivo da amamentação é prover saúde e alimentação de alta qualidade a bebês recém nascidos. Não se trata de um direito de adultos, sob pena dos bebês serem usados para emular um fetiche. Em última análise, isso pode ser considerado, inclusive, abuso infantil”, finaliza a diretora do Instituto MATRIA.
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