Afinal, o que querem as mulheres?
Por: Marta Dueñas, jornalista
E-mail: marta.duenas@mulheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
Para falar sobre mulheres, eu preciso recorrer à minha própria história e, na coluna desta semana, me darei espaço para falar em primeira pessoa e trazer recortes da minha própria trajetória. Sou uma profissional com mais de 20 anos de experiência. Fui uma aluna dedicada e exitosa, não perfeita nem perfeccionista. Recebo mensagens dos meus professores da escola e universidade até hoje. Retornos e comentários de textos publicados, de notícias minhas ou andanças. Nem sempre foi assim. Na escola já havia a presença daquilo que eu não sabia nominar até perto dos meus 40 anos: a estrutura patriarcal.
Como eu me via: curiosa, inquieta, ansiosa em crescer, perguntona, líder. Eu era uma aluna organizada, queria melhorar e ser aceita. Organizava eventos, ações, coisas. Fui líder de classe, presidente do Grêmio Estudantil, era do grupo de teatro, do grupo de redação, do grupo de leitura. Pela manhã na escola, à tarde no atletismo. Depois no movimento estudantil, reuniões políticas, visita à sede da Anistia Internacional, trabalhos e projetos em ONGs. Na adolescência, comecei a sair à noite. Às vezes despistava meus pais dizendo que ia ao clube para fugir até o Bar Ocidente, um lugar plural, artístico, roqueiro, boêmio, punk, gay, que já era democrático desde 1990, em Porto Alegre, cidade onde nasci e cresci.
Como me viam e o que falavam de mim: mandona, briguenta, metida, difícil. Criança briguenta. Jovem rebelde. Depois, na adolescência, começaram coisas piores: vadia, drogada, bagunçada, mal acompanhada. Não presta. “Ela bebe, fuma e sai com um monte de rapazes”, uma mãe comentou à outra mãe no objetivo de alertar sua filha que era minha amiga de classe. Uma vez, meus pais foram chamados na escola pois eu estaria beijando na boca. Sim, tinha 15 anos e estava namorando pela primeira vez. O namorado era o Artur, íamos de mãos dadas para escola, caminhando. E em cada oportunidade de intervalo um beijo. Lembro de reagir aquele puxão de orelha da direção da escola dizendo algo do tipo: “a escola não se revolta contra a violência, mas se revolta contra o beijo”. Acho que parte da sociedade continua assim.
Ao contrário de cigarro e bebida, na minha rotina tinha muito esporte, leitura e participação no movimento bandeirante e escoteiro. Sábados eram feitos de teatro, esporte e escotismo. Em casa lia muito, ouvia música, brincava, brigava, dublava Tina Turner e Madonna. Tocava violão. Sonhava com esse futuro meu que eu nem imaginava. Testava as maquiagens da minha mãe, pegava as roupas da minha irmã. Dava rolo! Escutava muito dos meus pais: estude, escolha uma profissão para construir teu futuro. Também escutava: quando tu tiver a tua casa, dai sim tu vai poder fazer o que tu quiser. Ou a clássica, das clássicas: “Marta, tu quer chocar a sociedade”?
Mas em casa tem algo que definitivamente foi libertador para mim: nunca houve uma promessa de caminho a seguir como nos contos de fada. Aliás, mesmo que houvesse, eu não conseguiria me ver como fada ou princesa.
E como o jogo da vida tem dessas: entrei na faculdade, conheci um cara sensacional, comecei a namorar e fiquei grávida. O cara era o Fernando e logo mais nasceu o Wolf, meu filho. Pensa numa família tomando um susto e revendo toda a papelada dos ensinamentos progressistas! Até esse momento, eu não tinha escutado, lido ou me dado conta das cobranças que as mulheres passam. Não precisei. Minha história já tinha outras marcas e foram essas que me jogaram para uma beira em que uma cobrança sobre o corpo feminino parecia não dialogar comigo. Não lembro de meus pais me perguntarem sobre casamento ou aspirações de futuro que não fossem sobre trabalho ou coisas que eu quisesse fazer. Mas amigos dos pais e outras pessoas importantes da rede perguntavam. Ah, claro, minha vó também perguntava sobre casamento, mas fazia isso num misto de humor, pois o sonho dela era casar as netas com Guga Kuerten, Paulo Nunes e outro esportista. Mas sem exigências de precisão: a gente podia escolher ou até trocar pelo que entendi.
Ainda jovem, me lembro de como os adultos exigiam que olhássemos a vida com um caminho especifico, com modelos de futuro num padrão similar ao deles. Ninguém me perguntava muito sobre minhas atividades no teatro, no grêmio estudantil ou até no esporte, por exemplo. Era raro. Fora meus pais, claro. Não falar sobre alguns temas provoca um sumiço de determinadas questões nas relações. Nomes, palavras, definições e atividades precisam ser ditas nas mesas de jantar. E namoro, casamento, era, sem dúvida, um modelo a ser construído na história da vida adulta, especialmente das mulheres. Mas como eu andava pela lateral disso, não achava que esse papo era comigo, embora compreendesse que havia no universo das famílias um valor tangível em engatar uma relação romântica sólida como uma das conquistas da maturidade.
De lá para cá, construí minha vida com muitas conquistas, exceto o tal casamento sólido. Tive profundos aprendizados, senti alguns medos. Assim como tantas, passei por constrangimentos que o mercado, as relações patriarcais e o mundo capitalista nos impõem. A diferença que vale marcar é que antes eu achava “normal” ou entendia que teria que saber lidar com “isso”. Que um elogio insistente numa mesa de reunião era normal e que se continuasse acontecendo era porque eu estava me arrumando demais para o trabalho. Cheguei a escutar isso. Que se eu fosse interrompida inúmeras vezes por pares homens em ambiente de trabalho, eu sorria e aguardava meu momento de falar. Numa reunião como secretária de Estado, meu colega homem, também secretário, fazia mais contato visual com o único homem da mesa ainda que ele fosse o estagiário. O mesmo ocorria quando empresária e líder de um projeto que estava em apresentação junto ao cliente e ele insistia em perguntar sobre o trabalho exclusivamente ao meu sócio (homem) que estava lá, literalmente, para passar o Power Point.
Já trabalhei em empresa que tinha normas para vestimenta, maquiagem e comportamento. Tudo no manual de RH. E era justamente nesse departamento que o diretor tomando chimarrão passava a cuia e nos dizia: “chupa na bomba”. A gente se acostuma, mas não devia.
Eu odiava me acostumar com isso (odeio ainda), mas por força da violência vamos espremendo o que sentimos para viver e atravessar essas situações. Por que, afinal, quem quer passar uma vida sendo a chata, mandona e agressiva? Depois, com mais de 40 anos e sem casar, estaria tudo explicado (também escutei isso).
Lembro-me como se fosse hoje, um almoço delicioso na casa de uma amiga em que ela e eu dançamos na cozinha enquanto preparávamos algo. Aquilo virou filme e do filminho virou post. Era o início dos vídeos no Instagram. No dia seguinte, um importante executivo da comunicação ligava e nos repreendia. Por que tínhamos feito aquilo? Que nossa exposição era desnecessária e podia prejudicar nossa carreira. Era uma dança, de dia, na cozinha de casa, num almoço entre amigos. Um misto de vergonha e raiva me tomou. Mas a vergonha e o medo venceram e o vídeo foi tirado. Lá estava eu lembrando do vice-diretor da escola me dizendo que era feio eu beijar pois servia de exemplo para outras, nas palavras dele. Na minha mente vinha: contenha-se. Aprenda a se comportar como mulher. O que é uma mulher, afinal?
Já troquei de roupa, para evitar discussões com namorado. Tirei um vestido que eu achava lindo e coloquei uma calça com uma blusa solta. “Muito mais linda”, disse ele. E quando já não tinha mais roupa para trocar vem: “porque tu tens que que discordar de mim”, dizia. E num dia, tascou: “tu tem sempre uma opinião?”. Sem ter mais o que tirar, tirei ele da minha vida. Mas demorou e doeu muito.
O corpo incomoda, a voz incomoda, o pensamento incomoda. As mulheres incomodam os homens. Mas é no nosso corpo que essa conta fecha. É na gente que dói o incomodo masculino. É no corpo censurado, naquela sensação interna, uterina, de que qualquer ousadia vai custar caro.
A essa altura parece que minha história foi feita de namoros, mas não foi. Aliás, eu até que namorei pouco perto do tanto que fiz em trabalho, projetos e aventuras. Mas é nas relações que se consolidam algumas das violências das quais somos “predestinadas” a sofrer por ser mulher. A família nos prepara, algumas abusam, a escola nos molda, os mais velhos avisam. E assim chegamos ao mercado de trabalho e aos namorados. Mas eu resolvi ser desobediente e sai de casa menos preparada que as outras. E pasme, mesmo assim me casei. Foi uma festa linda, uma relação de muita paixão e desafios. A palavra foi embora antes do amor e nessa lacuna surge o violento silêncio. É algo comum, dizem. Eu não sabia. Quando nos separamos, uma decisão extremamente difícil, não houve uma conversa. Ele arrumou as malas e partiu. Eu acordei e ele não estava lá. Eu sabia que ele iria embora. Eu tinha pedido para terminar. Nesse casamento, ele não me pediu para trocar a roupa ou não ter opinião (embora pouco se importasse com ela), mas de alguma maneira me tirou a voz. E dado todo contexto dessa experiência, vivendo numa nova cidade em outro estado, eu já não tinha certeza se teria voz ou vez. Ele partiu, eu fiquei.
Não faça dessas confissões a ideia de que no dia das mulheres eu mostro minha vida através das relações. Mas acho importante dizer que é nas relações que as primeiras violências e abusos ocorrem. E não são poucos. Eu não sou uma mulher vítima das circunstâncias ou que fez escolhas erradas. Eu sou uma mulher e é isso.
Uma das mais recentes pesquisas realizadas sobre violência e gênero revela que, em São Paulo, cerca de 67% das mulheres já sofreram algum tipo de assédio. E o ultimo levantamento da Rede de Observatórios de Segurança revelou que a cada quatro horas, no Brasil, uma mulher sofre violência. O levantamento destaca que 75% dos casos de feminicídio têm maridos ou ex-companheiros como autores e o motivo é ciúmes ou não aceitação de término da relação.
O patriarcado não é apenas o medo dos homens quanto à liberdade das mulheres, é um projeto sócio-econômico que tira direitos e desenha uma estrutura de poder sem espaço para nós. A relação dos homens com o mercado, a política, a natureza e as mulheres ainda é medieval e feudal e um dos elementos de controle é o nosso corpo.
Não é à toa que entendemos e até falamos do incômodo que acompanha o crescimento do corpo feminino. A vergonha que começa quando uma jovem “bota corpo”. Por que ficamos com medo desse corpo que é o de cada uma de nós?
Porque ainda não temos direito a um corpo em forma, conteúdo e prazer como bem queremos. Porque quando elaboramos o medo desse corpo temos que recortar, amassar e espremê-lo para que caiba num contorno padrão. Porque quando ele cabe nessa forma imposta, nos tiram o direito de escolha sobre o que colocar para dentro dele. Porque não nos sentimos desejáveis e mesmo assim somos violadas. A gente precisa de um corpo para existir. Esse corpo tem tamanho e pede espaço. Esse corpo emite sons, tem voz e tem direito de andar, dançar, pedalar, mergulhar, cantar, transar, parir, gestar, abortar, desejar. Poder. Existir. Esse corpo sou eu. Esses corpos são os nossos. Essa é a nossa história, mulheres. Que possamos elevar nossos corpos aos espaços de conforto e prazer que estão em nossas buscas mais sinceras.
Ao contar algumas passagens da minha vida, convido você a refletir porque nos importa quando um deputado assedia uma deputada em pleno ofício do trabalho. Que ofensas e abusos cometidos à primeira Presidenta do Brasil é uma violência contra todas nós. Que quando a justiça criminaliza as vitimas mulheres por violências feitas por homens, é o nosso corpo e a nossa alma que vai doer. Andemos juntas.
Na semana das mulheres, choro as dores que ainda estão aí me testando e celebro os avanços que conquistamos. Que nunca mais tenhamos que ser belas, recatadas e do lar, se esse não for nosso próprio desejo. Que não sejamos a próximo ex louca que todo homem diz que tem. Que não deixemos de valorizar nossos êxitos e os das outras mulheres pois assim crescemos. Mas em especial, desejo aos homens que mergulhem em seus medos sem nosso sangue. Que os medos dos homens não sejam mais os nossos medos.
É o que, afinal, quero hoje.