Aborto seguro, humano e gratuito tem que ser direito e escolha
Por: Haline Farias, jornalista
E-mail: haline.farias@muheresjornalistas.com
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista
Diretora de jornalismo: Letícia Fagundes, jornalista
De 2016 até outubro de 2020, a rede pública de saúde brasileira realizou 8.665 abortos com autorização judicial, 66.077 aspirações intrauterinas e 811.786 internações para curetagens
Em agosto de 2020, o governo federal publicou uma portaria modificando os procedimentos que os profissionais da saúde devem seguir em casos de pedido de aborto feito por vítimas de estupro. A medida foi assinada pelo ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, tornando obrigatório informar a polícia sobre o aborto, notificar a possibilidade de realizar ultrassom para ver o feto e questionar a vítima sobre.
Com a chegada de um novo governo neste ano, mudando os personagens na liderança do governo, o Ministério da Saúde, por meio do art. 1º, III, da Portaria nº 13/2023, revogou a Portaria nº 2.561/2020 (citada anteriormente). A defensora pública da DPE-GO (Defensoria Pública do Estado de Goiás), Ketlyn Chaves, integrante do Núcleo Especializado de Defesa e Promoção dos Direitos da Mulher (Nudem/DPE-GO), comenta que atualmente não há necessidade de preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro, como fragmentos do embrião ou feto. “Acreditamos que essa revogação é uma vitória para as mulheres, pois viabiliza o acesso e manutenção de seus direitos sexuais e reprodutivos.”
Pauta de discussões que se repetem há muitos anos, o tema aborto legal configura um cenário de embates entre os que desejam ampliar e garantir o acesso ao aborto legal de forma humana e segura, e os que buscam dificultar, restringir e de alguma forma penalizar. A crescente onda que se deu nos últimos anos, no mundo e no Brasil, do fortalecimento de movimentos, pensamentos e figuras extremamente conservadoras carregadas de ódio, trouxe à tona mais uma vez, de maneira contundente, discussões sobre a descriminalização do aborto e as possibilidades já tão restritas de aborto legal.
Aborto legal no Brasil
Desde 1940, pelo Código Penal, o aborto não é criminzalizado no país quando há risco de vida para a gestante e a gravidez é resultado de um estupro. Em 2012, o STF (Supremo Tribunal Federal) julgou que, em casos de anencefalia fetal, a gravidez também pode ser interrompida. O Código Penal brasileiro estabelece pena de 1 a 3 anos de detenção para aborto, exceto nos casos citados anteriormente.
O médico ginecologista e obstetra, e também professor na área da saúde em faculdades e universidade, Jefferson Drezett, diz que, considerando o cenário internacional das leis relativas ao aborto o Brasil hoje, está classificado como um país com uma legislação fortemente restritiva em relação ao aborto.
“Há todo um procedimento que deve ser respeitado que está estabelecido. E muita gente acha que esses procedimentos são poucos e que deveriam existir mais. […] As mulheres precisam que o sistema de saúde ofereça mais que o procedimento da interrupção. O aborto envolve um grande número de emoções, dúvidas e temores do que simplesmente oferecer uma consulta médica e o procedimento parece que está muito longe do que as mulheres precisam e deveriam receber. Portanto, o atendimento, do ponto de vista social e emocional, são todos muito importantes para que o processo seja feito da melhor maneira possível, fazendo fundamental também o trabalho de um(a) assistente social e psicólogo(a).”
Ketlyn ressalta a audiência pública, que aconteceu em agosto/2018, no âmbito da dita ADPF que contou com a participação de especialistas e autoridades contrárias e favoráveis à descriminalização da interrupção voluntária da gravidez.
“Sobre o tema, indicamos a exposição da defensora pública do Rio de Janeiro, Lívia Casseres, que confere destaque ao perfil da mulher criminalizada por aborto e indica quem são as mais vulnerabilizadas: mulheres negras, jovens, mães, moradoras da periferia, com profissões desvalorizadas, e que necessitam dos serviços públicos. A título complementar, indicamos o estudo “Entre a morte e a prisão”.
A médica ginecologista e obstetra Anita Lucas, residente de Novo Hamburgo/RS, é militante da Marcha Mundial das Mulheres e luta pelos direitos das mulheres. Ela explica que o aborto legal pode ser realizado em qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia, possua equipamento adequado e uma equipe treinada para realizar aborto legal. “Entretanto, muitos serviços ainda se recusam a realizar o aborto legal. Em 1989, foi criado o primeiro serviço de aborto legal no Brasil, para casos de gravidez resultada de estupro. Atualmente, este serviço é prestado em hospitais do SUS em vários estados do Brasil.”
Jefferson Drezett relembra que apenas no final dos anos 1980 é que criou-se a primeira organização do serviço público brasileiro para o atendimento dos casos de aborto legal e acrescenta: “Em 1994, no Brasil só existiam quatro serviços realizando a interrupção legal de gestação. Demorou muitas décadas para que existisse uma política pública de saúde para começar a cuidar dessas situações e, desde então, percebeu-se um crescimento expressivo do serviço de saúde que realiza o aborto legal, embora seja absolutamente explícito que esse número, apesar de ter crescido muito, ainda é completamente insuficiente para atender as mulheres brasileiras. Há uma distribuição bastante desigual desses serviços de saúde, com uma concentração maior nos estados do Sul e Sudeste, e temos pelo menos seis estados brasileiros onde não existe de fato o funcionamento de nenhum serviço em todo estado. Então, ainda é um processo que oferece procedimentos de forma irregular, descontínua e insuficiente.”
Em cinco anos, de 2016 até outubro de 2020, na rede pública de saúde foram realizados 8.665 abortos com autorização judicial, 66.077 aspirações intrauterinas (esvaziamento do útero por meio de uma seringa de vácuo) e 811.786 internações para curetagens (raspagem do útero). Os dados foram disponibilizados pelo Ministério da Saúde, que consultou o Sistema de Informações Hospitalares do SUS e a plataforma Tabwin, do DataSUS. O estudo apontou que 2019 foi o ano com maior número de procedimentos: 1.982. Esses procedimentos cirúrgicos de aspiração e curetagem são feitos após um aborto espontâneo ou uma tentativa provocada, muitas vezes mal sucedida, de interrupção da gravidez.
Quando a gravidez é resultado de estupro, a vítima deve procurar um serviço de aborto legal, comenta Anita. “A vítima será acolhida pela equipe multiprofissional, não é necessário boletim de ocorrência na polícia. Esta equipe vai acolher a mulher, realizar todos os procedimentos necessários e realizar o aborto. O tempo de gravidez deve ser até 22 semanas”. A médica complementa que, nos casos de anencefalia, não é necessário consentimento judicial, mas sim exames que confirmem esta malformação. “Em caso de outras malformações não compatíveis com a vida fora do útero, a mulher deverá ter autorização judicial.”
De acordo com defensora Ketlyn Chaves, a realização do aborto legal não depende de decisão judicial, bem como não se condiciona ao boletim de ocorrência policial. Caso a gestante tenha o seu direito negado no hospital, “indicamos que procure a Defensoria Pública para que a interrupção da gravidez seja pleiteada judicialmente”. Anita comenta que médicos e outros profissionais da área da saúde podem não concordar em realizar o procedimento, pois é dado o direito ao profissional de se recusar a realizar o aborto, por objeção de consciência, quando a ação é contra seus valores.
Como seria possível desfazer/amenizar tanto retrocesso?
Desde 1990, em todo dia 28 de setembro comemora-se O Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. A data foi instaurada no 5º Encontro Feminista Latino-americano (EFLAC), na Argentina, a partir da sugestão de grupos feministas que percebiam a urgente necessidade de trazer mais conscientização e visibilidade a situação do aborto na região.
De acordo com o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), os países da América Latina estão marcados por um processo colonial com a soberania da Igreja Católica, de processos de dominação e controle dos corpos das mulheres e da população indígena e negra.
As mulheres, em suas diferentes vivências, enfrentam diversas violências e opressões. A ilegalidade do aborto e suas consequências são, sem dúvidas, fortemente violentos e oprimentes, atrelados a outros problemas como saúde pública sucateada; a falta de acesso a serviços de planejamento familiar, ao serviço pré-natal de qualidade, a serviços de emergência obstétrica eficazes e de qualidade para tratar as complicações decorrentes de aborto provocado ou espontâneo. E mesmo para as mulheres que se encaixam no perfil do aborto legal no país, ao enfrentar o processo existem muitos obstáculos até conseguir concretizar o procedimento.
A médica Anita defende que o aborto deve ser um direito das mulheres que queiram interromper uma gravidez indesejada, independente de como foi que engravidou.
“É sabido que os métodos anticoncepcionais podem não ser totalmente efetivos, a camisinha não é totalmente segura, a maioria dos homens não quer usar camisinha, muitas mulheres não podem usar métodos hormonais, muitas não têm informação suficiente sobre métodos contraceptivos. Precisamos acabar com a hipocrisia da sociedade, sobre o tema do aborto. Com o aborto legal, as mulheres vão parar de morrer ou ficar com alguma sequela por aborto mal feito em clínicas clandestinas, ou por ingestão de medicamentos, ou por introduzirem algum instrumento no útero. As mulheres que mais morrem ou são internadas com complicações são as pretas, indígenas, pobres e de baixa escolaridade, entre 14 e 40 anos.”
O aborto realizado de forma insegura, em situações precárias, os caracterizados como ilegais, são quase sempre feitos de maneira insalubre e que oferecem muitos riscos à vida da mulher. Descriminalizar o aborto, em suas mais diversas motivações, garante à mulher um processo com segurança e humano, com atendimento decente em um hospital, procedimento realizado por profissionais com competência.
Anita acrescenta que legalizar o aborto não é obrigá-lo – “a mulher que não desejar interromper a gravidez não o fará. Aborto legal não é aborto obrigatório” – e que os profissionais de saúde, da área da psicologia, enfermagem, serviço social, medicina devem ser capacitados e treinados para o acolhimento e atendimento às mulheres.
O resultado dessa realidade cruel, conservadora e violenta, e que também é institucionalizada, é o crescimento da maternidade na adolescência, mortes em abortos ilegais, problemas na saúde mental das gestantes etc. A médica Anita comenta:
“Aborto não é caso de polícia, é caso de saúde pública. Milhares de mulheres recorrem ao aborto para se livrarem de gravidez indesejada, e milhares de mulheres morrem ou ficam com sequelas graves por procedimentos mal feitos. Ainda podemos afirmar que o custo financeiro é muito alto, as mulheres se endividam para pagar por algo que pode lhes levar à morte”, conta a médica Anita.
Alguns hospitais podem se negar a realizar a interrupção legalizada da gravidez, mas de acordo com Jefferson isso é injustificável. “O médico como indivíduo tem direito ao dispositivo de objeção de consciência, algo individual que não pode ser imposto por um chefe de equipe, gestor de hospital etc. […] De toda forma, a mulher que recebe esse tipo de negativa tem algumas alternativas para buscar reparação: a mais comum é que a mulher procure a Defensoria Pública ou o Ministério Público para reclamar que não foi atendida nessas circunstâncias com todo o dano que isso representa.”
Sem dúvidas, as mulheres brasileiras enfrentam um total desfavorecimento tratando da legalização do aborto comparadas com mulheres de outros países. Jefferson afirma que é necessário compreender que esse não é um assunto que deve ser tratado dentro do âmbito moral, mas sim como um problema de saúde pública. Ele acredita que o Estado brasileiro deveria considerar duas questões: a primeira é que, para a Organização Mundial de Saúde (OMS), já há muitos anos, todas as leis relativas ao aborto deveriam existir para proteger a saúde e a vida das mulheres, e não para criminalizá-las ou restringir o acesso ao aborto seguro; a segunda é pensada pelo ponto de vista do campo de direitos humanos no âmbito internacional, onde a descriminalização do aborto é vista como direito das mulheres. O médico elabora:
“Há um grande esforço para que os países tentem diminuir suas restrições ao aborto e criar ambientes onde seja possível reduzir a necessidade de se fazer abortos. Nem para a OMS e nem para o sistema internacional de direitos humanos há sentido imaginar que as mulheres irão fazer muitos abortos. Cada vez que uma mulher precisa recorrer à uma interrupção de gestação, isso não é algo positivo, não é algo que as mulheres busquem alcançar em suas vidas. Portanto, o ideal é que as mulheres tenham a possibilidade, em alguma medida, de fazer gestão sob sua capacidade reprodutiva de forma sucinta e eficiente para que poucas vezes seja preciso recorrer a uma interrupção de gestação.”
Alguns países, que já há décadas passaram a ver o aborto como uma questão de saúde pública e pararam de criminalizar sob a pespectiva moral e religiosa, são exatamente os países que hoje tem as menores taxas de aborto. Jefferson conta que a descriminalização seguida de uma melhor qualidade de assistência de saúde sexual e reprodutiva, redução de violência contra mulher, um conjunto de situações que refletem na melhora da qualidade de vida e do respeito à vida das mulheres termina em taxas muito menores, como a Bélgica e a Holanda.
A descriminalização do aborto é algo que ainda precisa ser mais discutido e de mudanças. É necessário incluir os diversos recortes dos vários grupos e territórios. Esse é um tema sobre saúde pública, direito à maternidade, a possibilidade das mulheres terem a vivência da maternidade com dignidade, que as mulheres tenham escolha sobre seus corpos e o rumo de suas vidas.