Por Melissa Rocha, Jornalista -RJ

melissa.rocha@mulheresjornalistas.com

Editora Chefe: Letícia Fagundes, Jornalista

Absurda tentativa de liberar cultos religiosos em plena pandemia reflete o uso da religião como um meio de manipulação, que mira, em especial, os evangélicos

O uso da religião como ferramenta de manipulação é uma das táticas mais nefastas usadas por políticos e aproveitadores, que fazem da fé alheia degraus para sua ascensão pessoal. Foi tirando proveito da crença – e do dinheiro suado de fiéis – que muitos pastores e gurus espirituais conseguiram acumular riqueza, erguer templos faraônicos, criar emissoras de rádio e TV e construir extensas carreiras políticas.

No Brasil de 2021, essa prática segue a pleno vapor, e o mais recente exemplo foi a tentativa de liberar cultos religiosos num momento que o país encosta na marca de 4 mil mortes diárias por covid-19. A empreitada foi liderada pelo ministro Kassio Nunes, do STF. Em decisão monocrática, que tinha evangélicos como alvo principal, ele liberou a realização de missas e cultos durante a pandemia.

Indicado para o STF como o ministro “terrivelmente evangélico”, Nunes integra uma cruzada para fazer dos cristãos massa de manobra do atual governo. Para isso, cria-se a ilusão de uma falsa perseguição religiosa, no intuito de fazê-los apoiar ações que, na realidade, contrariam a própria Bíblia. Essa manobra pode ser constatada na própria decisão monocrática de Nunes. Nela, o ministro contrariou dois dos dez mandamentos bíblicos. Ele subverte o quinto mandamento, que determina “não matar, nem causar dano, no corpo ou na alma, a si mesmo ou ao próximo”. Subverte, também, o mandamento dado por Jesus no novo testamento: “amai-vos uns aos outros”. Se na pandemia o contato com outras pessoas, em locais de aglomeração, eleva o risco de contágio, manter o distanciamento é uma forma de evitar danos a si mesmo e ao próximo – o que, como consequência, é também um ato de amor ao seu semelhante.

Ministro Nunes Marques em sessão da 2ª turma realizada por videoconferência. Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF (10/11/2020)

Mas Nunes não se limitou a contrariar a Bíblia em sua decisão. Ele também distorceu os fatos ao sugerir que a suspensão dos cultos fere a Constituição. Diz o ministro: “A lei, decreto ou qualquer estatuto que, a pretexto de poder de polícia sanitária, elimina o direito de realizar cultos (presenciais ou não), toca diretamente no disposto na garantia constitucional”. O que o ministro deliberadamente oculta é que a pandemia não é um pretexto, mas sim um fato. E diferentemente do que ele alega, ninguém “eliminou” o direito de realizar cultos, apenas suspenderam, temporariamente, cultos presenciais.

Suspender cultos religiosos na pandemia foi uma decisão pautada pelo bom senso, afinal já são mais de 340 mil vidas ceifadas pelo novo coronavírus. Não se trata de perseguição, mas sim de uma convocação aos religiosos para que integrem a campanha para salvar vidas evitando aglomerações. Muitos atenderam a esse chamado e passaram a realizar cultos de forma online. Era isso que o governo – e seus aliados, como Nunes – deveriam apoiar. Mas essa nem de longe foi a intenção do ministro em sua decisão. Seu objetivo era, simplesmente, atiçar em religiosos a ilusão de que forças ocultas estão tentando impedir que eles professem sua fé.

A mesma tática foi usada pelo Advogado-Geral da União, André Mendonça, e o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, ao discursar na abertura do julgamento da decisão de Nunes, pelo plenário do STF. Ambos fizeram um discurso digno da idade média e com contornos fundamentalistas. A intenção ali não era defender o direito dos fiéis, mas sim afagar Bolsonaro, já que ambos têm ambição por uma vaga no STF. E o mandatário – que desde que chegou ao poder advoga em causa própria – tem entre suas principais estratégias usar religiosos como degrau para se reeleger em 2022.

Como dito no início deste artigo, a estratégia de usar a religião para manipulação não é novidade. Por isso, para finalizar, seguem dois exemplos recentes. Um é o caso da deputada Flordelis, que se elegeu fazendo da religião sua principal plataforma, e hoje responde na Justiça como mandante do assassinato do marido. Outro exemplo foi o caso do ex-deputado Eduardo Cunha. Em 1995, quando traçava sua ascensão política, Cunha foi apadrinhado por Francisco Silva – dono da rádio evangélica Melodia FM. Ele passou a frequentar cultos e prestar serviços para a rádio, na qual lançou seu famoso bordão “O Povo Merece Respeito”. Anos mais tarde, denúncias de corrupção comprovaram que respeito pelo povo era tudo que Cunha não tinha.