Por Letícia Fagundes, jornalista
Chefe de reportagem: Juliana Monaco, jornalista

 

Há um tempo atrás escrevi uma reportagem e utilizei o termo “pilota”, para descrever mulheres que pilotam aviões.

Como jornalista, apurei demais os fatos, busquei pesquisar e entender toda história das mulheres na aviação e a construção histórica disso. Entendi que jornalistas já utilizavam o termo e outros ainda resistentes, faziam voltas. Resolvi utilizar o que havia de melhor para entregar a reportagem ao público.

Tive espaço para ecoar vozes importantes e estruturar a entrevista que saiu aqui no Instituto Mulheres Jornalistas, no dia 22 de novembro de 2023, intitulada de “PROFISSÃO PILOTA: O impacto das mulheres na aviação”.

Houve uma grande repercussão na reportagem. As mulheres da aviação se sentiram representadas, diante da entrevista concedida pela pilota da Azul, Carla Azevedo, mas entendi que há um processo de hostilidade na palavra.

Sempre temos o retorno pós conteúdo jornalístico colocado no ar e com esse não foi diferente. Afinal, hoje o público não é apenas receptor. Um conteúdo como este que tem como papel fundamental transportar conhecimento, cultura, modernidade e acesso levantou questionamentos.

Os processos históricos ainda não são suficientes para que centenas de milhares de mulheres estejam na aviação, mas o papel da comunicação é tornar esses espaços mais transitáveis, principalmente no que tange a como cada um deve ser chamado.

Em tantos anos de jornalismo sempre entendi que não se deve deixar um público com dúvidas ou acreditando em uma informação equivocada individual. Quando somos autores de reportagens que causam questionamentos é importante levar mais conhecimento através da informação.

Como a reportagem levantou questionamentos com comentários do tipo “Está errado usar a pilota”, então entrevistei dois grandes nomes brasileiros da língua portuguesa para entrevistá-los. O conhecido professor de língua portuguesa, Pasquale Cipro Neto, que atualmente, participa do podcast da CBN Pasquale Cipro Neto – A Nossa Língua de Todo Dia https://audioglobo.globo.com/cbn/podcast/feed/331/nossa-lingua-de-todo-dia e também entrevistei filólogo e linguista da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da Academia Brasileira de Letras, o Acadêmico Ricardo Cavaliere.https://www.academia.org.br/noticias/filologo-ricardo-cavaliere-e-eleito-na-abl

Afinal, a internet deve ser espaço de contribuição com fontes oficias ao público.

 

Boa leitura!

Instituto Mulheres Jornalistas: Com as mudanças culturais e o acesso das mulheres no mercado de trabalho, a língua portuguesa também se altera?

Ricardo Cavaliere: Língua é expressão cultural, sempre se ajusta às mudanças que a sociedade sofre no decurso do tempo. Palavras antigas são esquecidas quando a coisa designada deixa de ser usada, como no caso do substantivo fiacre, ou quando o falante simplesmente a põe na prateleira dos vocábulos dispensáveis, conforme ocorreu com o advérbio asinha. Já outras palavras são criadas para dar conta da designação das coisas que o engenho humano cria, daí a necessidade de neologismos. Via de regra, os neologismos são fruto do uso linguístico, cabe ao falante tomar a iniciativa da inovação. Com a progressiva inclusão da mulher no mercado de trabalho, surgiu a necessidade de se criarem formas femininas para substantivos que originalmente só se usavam no masculino, como no caso de operária, maestrina, juíza etc. Como a língua portuguesa tem mais de um processo morfológico para designar o gênero, em certos casos não surgiu um feminino derivado do masculino, mas um nome comum de dois gêneros, como o(a) motorista, o(a) escrevente etc. Por outro lado, não é incomum que a criação neológica siga os dois caminhos, o da derivação e o da criação de nomes comuns de dois gêneros, tendo em vista haverem ocorrido em épocas distintas. Eis por que temos casos como o(a) mestre a par de a mestra.

Pasquale Cipro Neto: Não é propriamente a língua que se altera, a língua é uma questão que envolve estrutura e tal, a questão é mais de terminologia, de nomenclaturas, vocabulário e por aí vai. Sim, há uma alteração evidentemente, há uma alteração. É preciso incorporar os termos que surgem da participação das mulheres no mercado de trabalho.

Instituto Mulheres Jornalistas:A palavra pilota é uma forma correta de ser usada, quando se refere a uma mulher que esteja pilotando uma aeronave?

Ricardo Cavaliere:Nós temos de partir da premissa de que o gramático ou o lexicógrafo não determinam o que é certo ou errado. Na verdade, apenas registram o que o falante usa no cotidiano da linguagem, distinguindo as formas acatadas pelo grupo social e as rejeitadas. Portanto, se o lexicógrafo registra pilota como feminino de piloto, certamente semelhante registro decorreu de uma pesquisa lexicológica que verificou a frequência do termo em textos escritos ou orais de gêneros distintos. Mas, ao lado de pilota, também há registro de o(a) piloto, ou seja, atesta-se uma certa hesitação do falante quanto ao uso dessas formas lexicais. É uma situação análoga à de sargenta e o(a) sargento que só se resolverá com o tempo, até que o falante consolide o uso de uma forma e ponha a outra na prateleira dos arcaísmos.

Pasquale Cipro Neto:Não é possível condenar o uso de pilota o uso de árbitra. Por que insistir em negar isso, se isso existe? Engenheira, arquiteta, advogada, pilota, árbitra. Eu não vejo problema algum no uso de pilota para nomear uma mulher que esteja pilotando uma aeronave.

Instituto Mulheres Jornalistas: Por que é importante que a língua portuguesa passe por estas transformações que envolvem, inclusive, situações históricas?

Ricardo Cavaliere:Não diria que é importante, porém natural. A mudança da língua é um resultado da mudança do mundo em que vivemos, dos valores humanos e conquistas tecnológicas, entre outros fatores. Há palavras ou expressões datadas exatamente porque cumpriram um papel relevante em um momento histórico da língua e hoje já não se justificam. Ninguém no Brasil, hoje, elogiará a alguém em linguagem informal dizendo que “fulano é uma brasa, mora”. Até o final dos anos 50 do século passado, era comum ouvirmos expressões como “aí está o busílis” para designar “aí está o cerne da questão”, “o foco do problema”. Os padrões de relacionamento público interpessoal mudam com frequência e a língua obviamente segue esse curso. Portanto, na língua, como na vida, há fatos que persistem no decurso do tempo e fatos que têm uma existência pontual, cuja pertinência passada já não se justifica no presente.

Pasquale Cipro Neto:É importante que a língua portuguesa passe por essas transformações e todas as línguas, porque elas precisam viver os ares contemporâneos. A língua não pode ficar para no tempo, ela precisa seguir o curso natural das coisas e nada pode deter isso, nada detém isso. Tentar impedir isso é mais ou menos como tentar determinar para que lado vai o vento. Não é possível determinar para que lado vai o vento. 

Instituto Mulheres Jornalistas:Podemos dizer que algumas pessoas são resistentes nas mudanças na língua, por que isso acontece?

Pasquale Cipro Neto:Sim, muitas pessoas são resistentes. As pessoas que fazem isso certamente acham que a língua é uma pedra, é algo que não se move, passam sabe-se Deus quantas gerações e a pedra está lá. Na verdade, eu gosto muito de uma frase escrita pelo linguista Celso Cunha, num livro dele, feito em parceria com Lindley Sintra, uma gramática, Celso Cunha brasileiro, Lindley Sintra português. O Celso Cunha é o revisor da atual Constituição, que entrou em vigor em 88, foi ele que revisou o texto. E o Celso Cunha dizia que a língua é um constante conflito entre duas forças, a força centrífuga da inovação e a força centrípeta da tradição. É evidente que existe um núcleo duro, que está lá desde sempre e que em termos de estrutura, está lá preservado, conservado, mas o vocabulário, as construções, as novidades e sobretudo o uso diário da língua, da linguagem popular que é muito rica, como diz Celso Cunha é a força centrífuga, é fato, não há porque negar e impedir esse movimento.

Ricardo Cavaliere:Certamente, haverá pessoas que resistem à mudança da língua porque semelhante mudança implica a desconsideração de valores que estão na formação da personalidade e edificam uma espécie de código de conduta. Há quem rejeite a entrada de estrangeirismos no português porque interpreta o fato como uma agressão à língua como símbolo da pátria, como expressão de nacionalismo. O uso do palavrão na mídia e nas legendas de filmes, por exemplo, foi aumentando à medida que os padrões morais se modificaram na sociedade brasileira. No entanto, as pessoas mais velhas, que viveram uma época em que se selecionavam claramente os ambientes em que o palavrão era admitido, certamente se sentirão incomodadas com o atual uso indiscriminado dessas palavras grosseiras. Por outro lado, há uma tendência natural de se convalidarem construções gramaticais que uma norma mais antiga condenava, como ocorre com o fenômeno do apagamento de pronomes átonos no português do Brasil: hoje já não se diz “João se aposentou cedo” e sim “João aposentou cedo”, “O jogador se machucou seriamente” e sim “O jogador machucou seriamente”. Quem frequentou a escola há várias décadas e conviveu com uma norma gramatical mais rígida nos bancos escolares certamente condenará esses usos que a língua contemporânea impõe. São pessoas que viviam uma época em que o rigor da normatização era mais acentuado em tudo que faziam: no trato familiar, no ambiente de trabalho, nos cultos religiosos etc. Portanto, a ojeriza à mudança da língua expressa-se como uma forma de resistência não propriamente ou unicamente à modificação da língua, mas à desconsideração de valores morais e filosóficos que estão na construção de nossa personalidade como seres humanos.

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